quarta-feira, 23 de março de 2011

O escritor premiado

No dia seguinte à chegada inesperada e retumbante, porém demorada, do sucesso, percebeu que suas roupas já não lhe serviam mais. Decidiu que iria imediatamente comprar calças, camisas, ternos e sapatos decentes, que fizessem jus a seu posto de mais talentoso e premiado escritor do ano.
Chegou a tirar o telefone do gancho, com intenção de ligar para a esposa e dizer “daqui a quinze minutos passo aí para te pegar”, mesmo que ainda fosse três da tarde e ela só estivesse livre do escritório às seis. O emprego dela não era mesmo grande coisa, seria até bom que abandonasse assim o expediente. Afinal, desde o dia anterior ela não era mais a esposa do escritor fracassado, de algumas centenas de livros vendidos e duas aparições na tevê (em matérias de cinco minutos cada, veiculadas no jornal local, nas quais deu declarações que, somadas, totalizam exatamente cento e setenta e sete segundos, de acordo com seu próprio cronômetro). Agora, ela seria a esposa de um dos expoentes da literatura contemporânea do país, que daria entrevistas a vários jornais, revistas e canais de televisão. Seria convidado da Flip, da Flap, do Flop e do Flup. Da Flep, não, porque esse evento é organizado por um de seus maiores desafetos. Mas quem precisa da Flep, afinal? Nem cachê eles pagam…
Abandonou o telefone porque lembrou-se da noite anterior. Depois de saber que seu livro inacreditavelmente fora eleito o melhor do ano por aquele bando de críticos que ele sempre julgou serem vendidos e, além disso, invejosos, idiotas, burros, analfabetos, safados, pilantras, mercenários e adjetivos outros que não cabem ser explicitados aqui, ele e sua esposa foram a um desses hipermercados que ficam abertos vinte e quatro horas comprar um vinho.
Mas não um vinho qualquer. A ocasião era por demais especial. Porque além de ter seu livro elogiadíssimo – os jurados do prêmio literário, na nota de divulgação do resultado final, diziam coisas como “um dos melhores romances da última década”, “com sua prosa arrojada, o autor entra para o seleto grupo de escritores que merecem o maior dos prêmios literários: a posteridade”, ou, ainda, “perturbador do início ao fim, este romance é uma obra-prima” –, sua conta bancária em breve estaria recheada de centenas de mil dinheiros. Para ele, dinheiro não seria mais problema, e fazia questão de comprar o melhor vinho que estivesse à venda naquela espelunca.
Até então, nunca precisara comprar um bom vinho. Nem mesmo quando do casamento. Com tanta coisa para pagar – “e a casa, meu Deus, e a casa?”, ele pensava, na época, sempre desesperado para honrar o financiamento em 300 meses feito através da Caixa Econômica Federal –, o casamento foi simples – bem simples, mesmo – e o vinho, mais ainda. Mas isso não significa que ele não soubesse o que é um vinho decente. Em suas leituras – ele lia muito, afinal, é um escritor –, volta e meia apareciam personagens ricos, cultos – e esnobes –, apreciadores de bons vinhos. Geralmente literatura francesa, sendo que alguns escritores norte-americanos também faziam questão de explicitar seus conhecimentos vínicos. Tal característica em escritores que ele tanto admirava o deixou curioso e ele terminou por ler alguma coisa sobre vinhos.
Na seção de bebidas, perguntou à esposa que tipo de vinho ela preferia. Ouviu como resposta “Um bom, ué. Pode ser este aqui”. Estava segurando uma garrafa de Quinta do Morgado (tinto e suave). Há pouco mais de um mês um amigo lhes indicara aquela marca, da qual gostaram muito. Mas agora a situação era outra. Ele não poderia tomar um vinho daqueles, barato, que qualquer um pode comprar. Além disso, lembrou-se dos escritores cultos, esnobes – mas nem sempre ricos – e geralmente alcoólatras que lia. Decididamente, não compraria um vinho ridículo como aquele.
Disse à esposa, com todo o cuidado, que gostara muito do Quinta do Morgado, mas que a ocasião era especial e que deveriam comprar algo melhor e mais caro. Novamente pediu-lhe uma sugestão; ela disse-lhe que não entendia de vinhos, e que gostara bastante daquele que agora colocava de volta na prateleira.
Naquele momento, não lhe causou espanto ouvir sua esposa dizer que não entende de vinhos. Mas nos segundos que antecederam o abandono do telefone, notou que não poderia comprar roupas com uma mulher que nada entende de algo tão importante. Decidiu ir sozinho ao shopping.

O shopping. Ele odiava o shopping. Pessoas indo de um lado para o outro, subindo e descendo, olhando vitrines, tomando sorvetes, comendo sanduíches, pessoas berrando, bebendo, fumando, tropeçando nele, impedindo sua passagem, levando horas para sacar um maldito dinheiro num caixa eletrônico. Ia algumas vezes ao shopping apenas porque frequentava as duas livrarias que lá estavam abrigadas. Não fosse isso, jamais colocaria seus pés ali.
Mas, naquele dia, o shopping lhe pareceu muito agradável. Pessoas sorridentes, felizes, mães e pais andando de mãos dadas com seus filhos, casais de namorados abraçados, tudo na mais perfeita harmonia. Percorreu algumas lojas masculinas de grife e gastou o equivalente ao valor que ganhara em todo o mês anterior, com suas aulas de literatura num cursinho pré-vestibular e alguma coisa que pingava em sua conta bancária referente a direitos autorais. Entrou em uma das duas livrarias, mas não comprou nenhum livro. Sequer passeou seus olhos pelas estantes. Nem mesmo verificou se ainda estava lá o único exemplar do seu livro que restava na livraria, coisa que ele sempre fazia quando ia lá – naquela loja ele bateu seu recorde de vendas: 53 exemplares vendidos na noite de lançamento, há dois anos. Queria apenas tomar um capuccino e comer um cookie de chocolate.
Ao chegar em casa, pouco antes das seis horas da tarde, seus olhos ignoraram a foto que ele sempre mirava ao abrir a porta e que estava no mesmo lugar em que sempre esteve nos dois últimos anos: uma peça comprada por eles especificamente para aquele fim. Ela queria que uma fotografia dos dois, a que ela mais gostava, fosse uma espécie de cartão de visitas do casal a todo aquele que entrasse naquela casa.
Ela chegou pouco depois das seis e meia e ficou surpresa ao ver todas aquelas sacolas de compras ao lado da cama. Perguntou que novidade era essa, e ele respondeu dizendo que um escritor talentoso não podia mais vestir roupas comuns, de lojas de departamentos. Precisaria, a partir de agora, vestir-se bem, com elegância. Ela achou engraçado, disse que a esposa do escritor queria andar elegante também e foi tomar um banho. Ele chegou a pensar na possibilidade de irem comprar roupas novas para ela no dia seguinte, mas seus pensamentos se voltaram novamente para a noite anterior. Depois, pensou que uma mulher como ela, que trabalhava no setor administrativo de uma empresa de médio porte, não tinha motivos para andar elegante. Durante a maior parte do dia ela vestia a farda da empresa, e nos finais de semana eles pouco saíam juntos. Ela não gostava de ir a eventos literários e, enquanto ele estava em um lançamento de livro, assistindo a uma mesa redonda sobre literatura ou mesmo tomando um café com algum amigo escritor, ela aproveitava para visitar sua mãe ou receber a visita de alguma amiga. Para atividades como essas, estar elegante não era necessário.
Alguns minutos se passaram e ela foi à cozinha com intenção de tomar o café que ele sempre fazia antes de ela chegar. Mas não havia café. Ele não fizera. Perguntou sobre o café e ouviu-o dizer que esquecera. Ela acabou fazendo.
Enquanto ela comia – ele, não, “fiz um lanche no shopping”; “você, comendo no shopping?”; “é, um capuccino e um cookie, deu vontade” –, ele pensava que, dali em diante, sua vida jamais seria mais a mesma. Se aquele livro lhe rendera um prêmio tão importante, o que os próximos, que seriam melhores ainda, não poderiam conquistar? E os anteriores, que também eram bons, começariam a vender mais, ganhariam novas edições, finalmente seriam lidos pelos mesmos críticos que ele julgava serem vendidos e, além disso, invejosos, idiotas, burros, analfabetos, safados, pilantras, mercenários e adjetivos outros que não cabem ser explicitados aqui, e certamente esses mesmos críticos derramariam sobre suas obras elogios dos mais variados, como “um dos melhores livros de contos da última década”, “com sua prosa arrojada, o autor entra para o seleto grupo de escritores que merecem o maior dos prêmios literários: a posteridade”, ou, ainda, “perturbador do início ao fim, este volume de contos é uma obra-prima”. Editoras disputariam para ter seu nome no catálogo, ele assinaria contratos de valores surreais e no máximo em três anos sua vida financeira estaria muito bem, obrigado. Ele dava ênfase ao “muito bem”.
Sua esposa terminara o café e se aproximava para sentar-se ao seu lado. Com aquela voz doce que só as mulheres carinhosas têm, ela perguntou como estava o seu escritor favorito de todos os tempos. Ela sempre esteve ao seu lado. Foi uma das poucas pessoas que acreditaram no seu talento e, quando ele se permitia pensar em desistir da literatura, ela dizia que ele só faria isso se passasse por cima de seu cadáver. O corpo dele respondeu mecanicamente ao carinho, exceto seus lábios, que não se moveram – nem para beijá-la, nem para dizer palavra.
Tão cedo ele não precisaria pensar em desistir da literatura, mas agora, enquanto forçosamente a abraçava, pensou que a ideia do cadáver não era de todo ruim.

* Conto publicado na edição de junho de 2010 do Suplemento Literário de Minas Gerais.

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