domingo, 29 de agosto de 2010

A mídia eletrônica segundo Roger Chartier

Como se dá a apropriação da literatura nos espaços escolares? Como estão sendo traçadas as relações entre os indivíduos e os novos suportes de leitura e escrita? E como anda a interface entre a imagem e o texto escrito no corpo da leitura? Estes são apenas alguns dos tópicos que foram discutidos durante o Colóquio Roger Chartier – apropriações de um pensamento no Brasil, que aconteceu de 12 a 15 de setembro no Rio de Janeiro. Em sua nova visita ao Brasil, o historiador e escritor Roger Chartier fez duas palestras: uma na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ e outra na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

Diretor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais), em Paris, na França, e professor especializado em História das Práticas Culturais e História da Leitura, Roger Chartier é um dos mais conhecidos historiadores da atualidade, com obras publicadas em vários países do mundo. No Brasil, um dos livros mais famosos é A aventura do livro, lançado pela Editora Unesp, no qual o autor enfoca de maneira instigante a reorganização do mundo da escrita após a internet.

Em sua última visita ao Brasil, em 2001, Chartier esteve na Multirio e concedeu uma entrevista exclusiva ao programa Educação e Trabalho, apresentado pela jornalista Eliane Bardanachvili, editora do portal da Multirio. No programa, o historiador fala sobre a leitura no século XX1, a história do livro e a sua relação com as novas tecnologias.

Segundo ele, se a tecnologia for amplamente utilizada dentro do mundo escolar, será possível criar uma nova geração de leitores e difundir ainda mais a leitura. “Não há uma imposição da cultura eletrônica sobre a cultura escrita”, diz. Acompanhe a entrevista:

Eliane Bardanachvili – O livro no Brasil ainda está longe de muitos brasileiros. No entanto, já estamos passando de leitores para navegadores da internet. Como o senhor analisa essa situação?

Roger Chartier – O mais importante é não pensar que essa nova técnica de transmissão dos textos, a eletrônica, seja igual para todos os países. Há um mundo de alfabetizados e um de analfabetos, que ainda não conseguem usar esta tecnologia. A diferença deve estar sempre presente, seja ela social, econômica ou cultural, dentro da população de um país específico ou em uma escala mundial. Um dado interessante é que 48% dos endereços eletrônicos estão localizados em países de língua inglesa, só 4% em países de língua espanhola e 3% apenas em países de língua portuguesa. Isto significa que a desigualdade não existe só no Brasil, mas no mundo todo.

Eliane Bardanachvili – As novas tecnologias acirram essas desigualdades. Ficaria, então, mais difícil criarmos novos leitores?

Roger Chartier – As novas tecnologias poderiam ajudar a criar uma nova geração de leitores e a difundir a leitura, se pensarmos em sua utilização dentro do mundo escolar. Poderiam ajudar no aprendizado, na leitura e na escrita. Assim, não há uma imposição da cultura eletrônica sobre a cultura da escrita. Pela primeira vez ocorre, na tela, a difusão de textos. A alfabetização nesta tecnologia é um diagnóstico otimista para o progresso da cultura escrita, dos hábitos de leitura.

Eliane Bardanachvili – É fácil uma pessoa que não seja um intelectual reconhecer a importância da escrita e da leitura?

Roger Chartier – É uma responsabilidade que vejo não somente como sendo da escola, senão também como de outras instituições contemporâneas como a mídia – televisão e jornal -, os eventos culturais e as feiras de livros. Estas instituições são incumbidas de cultivar a importância da leitura para que o cidadão possa conhecer sua sociedade e ter ferramentas críticas para compreender sua situação, os mecanismos que governam sua condição e a relação com outras pessoas e com os poderes. A partir da leitura, o cidadão moderno pode ter uma relação crítica e mais neutra com os mecanismos da sociedade que regem seu dia-a-dia e, assim, ser menos dominado por eles.

Eliane Bardanachvili – A escola deve ter, além do papel de alfabetizar, ensinar a criança a pensar?

Roger Chartier – Existem diversas definições de analfabeto. A clássica, existente no Brasil e em outros países, é aquela em que o indivíduo não sabe ler nem escrever. A escola tem o papel essencial de passar este conhecimento, aprofundando a questão. Acho que saber ler e escrever não seja suficiente para “ler” e “escrever”. Faz-se necessário a familiaridade com a escrita, no sentido que o indivíduo tenha uma cultura que o faça pensar por si mesmo, na relação com os outros e nas relações com os poderes econômicos, sociais e políticos. Esta seria uma forma de entender a cultura escrita e de lutar contra o que chamamos de analfabetismo funcional. De novo, a escola pode e deve desempenhar um papel fundamental, ainda que não de forma isolada, mas em conjunto com as outras instituições. A idéia é de que hoje exista e tenha se desenvolvido um analfabetismo relacionado ao mundo eletrônico. O mundo eletrônico é imposto a cada indivíduo e ainda existem dificuldades de acesso à compreensão e ao uso desta tecnologia por razões econômicas e culturais óbvias. As escolas e bibliotecas podem ajudar aqueles que já sabem ler e escrever e têm hábitos de leitura dentro do mundo clássico a se familiarizar com esta nova cultura.

Eliane Bardanachvili – A mídia eletrônica não seria apenas um apoio, mas um meio pelo qual a alfabetização também se efetivaria?

Roger Chartier – Esta seria a razão pela qual a presença de computadores nas escolas poderia ajudar na alfabetização. As experiências demonstram que o aprendizado das normas ortográficas podem encontrar no meio eletrônico um suporte didático eficaz, sempre com a presença do professor. Usar a informática na escola também é apresentar às crianças uma realidade que tende a desenvolver-se no futuro.

Eliane Bardanachvili – Professor, conhecer a história da leitura, a história do livro nos ajuda a entender esse momento tão conturbado que estamos vivendo?

Roger Chartier – Acho que o saber histórico pode ajudar na compreensão do presente, através das experiências do passado. Talvez possa até ajudar a organizar o desenvolvimento de programas de leitura ou mostrar a descontinuidade da história. No Brasil, existe o programa nacional de incentivo à leitura que ilustra esta questão. Por um lado é um programa que dedica-se a desenvolver os hábitos de leitura e levá-los onde eles não existem. Ao mesmo tempo, é um programa que a partir do conhecimento histórico de especialistas em educação, historiadores e sociólogos, permite reconhecer as etapas, as descontinuidades e as conquistas da leitura. Com isso, estabelecemos um vínculo imediato do passado com o presente para conseguir os objetivos já expostos: a iniciação dos indivíduos nos diversos níveis da cultura escrita, no saber ler e escrever, na prática da leitura e da escrita e no contato com o universo do texto eletrônico.

Eliane Bardanachvili - Olhando para esta história, que pontos o senhor ressaltaria como determinantes na relação que temos hoje com o livro e com a leitura?

Roger Chartier – Devemos ter em mente que Gutenberg criou a imprensa e não o livro da forma como o conhecemos. O livro nasceu nos primeiros séculos da era cristã e se diferenciava dos livros em rolo dos romanos e dos gregos. Com o tempo ele adquiriu a forma como nós conhecemos: com as folhas dobradas, as páginas e a encadernação. O livro chamado pelos historiadores de códice existiu antes e depois de Gutenberg. Nossa relação com o texto está ligada não só à técnica de Gutemberg, mas, principalmente, ao formato de livro que permite ler e escrever, folhear e criar índices. Isto não era possível com o livro da antiguidade. O rolo não pode ser folheado porque não tem folhas, não pode ser paginado porque não tem páginas e nem índices. Todo nosso relacionamento corporal com a cultura escrita está vinculado à forma de livros como conhecemos. Por esta razão, o texto eletrônico lança um grande desafio ao requerer uma mudança de hábitos. Temos que ler em frente a uma tela de computador, existe o teclado e o texto é lido como se fosse um rolo. Mas ao mesmo tempo utilizam-se todos os códigos de um livro: a paginação, o índice…

Eliane Bardanachvili – Estamos retrocedendo de alguma forma?

Roger Chartier – Voltamos ao passado mas, ao mesmo tempo, acumulamos o que foi adquirido com o código manuscrito e o código do livro impresso. Assim, podemos observar que a reflexão do presente pode ser esclarecida a partir do conhecimento histórico. Muitas vezes, compara-se a revolução eletrônica à revolução de Gutenberg. O que não acho adequado. É verdade que existe a mutação técnica, imprensa-texto digital, mas, o mais importante é a transformação da estrutura do suporte e da relação do corpo, da mente, do leitor com o texto. Mais adequado é comparar a invenção do código escrito à invenção da técnica digital.

Eliane Bardanachvili – Que tipo de relação estabelecemos com o texto que não está mais no papel?

Roger Chartier – Um livro é para nós um objeto material com características diferentes a um jornal, a uma revista ou a um arquivo. É uma obra com uma identidade, uma coerência e um autor. É a cultura do código, a vinculação objeto-obra, que desaparece com o texto no computador. O computador é um suporte que oferece ao leitor todos os tipos de texto. A identificação da obra como obra é mais difícil. O desafio se dá na leitura descontínua, fragmentada e segmentada, que não deixa perceber a unidade textual, ou seja, a obra como obra estética. Uma obra intelectual à qual pertence aquele fragmento. A visão que se tem da tela é ambígua. Por um lado é uma tela nova, que transmite textos; por outro, uma tela que já conhecemos, como a da TV. A descontinuidade da leitura frente ao computador traz de volta a prática do zapping. O desafio é como conseguir ver o livro digital como obra coerente, com unidade e identidade.

Eliane Bardanachvili – Pelo jeito, o livro de papel ainda mantém os seus encantos e, mesmo competindo com a internet, não deve morrer…

Roger Chartier – Acho que não. A leitura do texto digital é descontínua e adequada a certos tipos de obras, como dicionários e enciclopédias, onde o leitor procura determinadas palavras ou artigos, e que não precisam ser lidos da primeira a última página. Enquanto obras ou livros requerem a compreensão total, exigem a familiaridade com romances, ensaios, livros de história e de conhecimentos. Acredito que para nós e, possivelmente, para as futuras gerações sempre estarão presentes as três formas de escrita: a manuscrita, ainda usamos o texto escrito à mão, a cultura impressa e, para os que tiverem acesso, o texto eletrônico.

Eliane Bardanachvili – Nós falamos até aqui das novas tecnologias interferindo na rotina de quem lê. E na rotina de quem produz o texto escrito, quais são os tipos de interferência?

Roger Chartier - Para os autores de ficção e de novela existem as possibilidades de usar a relação mais próxima entre a escrita, o autor e o leitor e a de propor ao leitor a intervenção no texto, como se fosse um jogo, entre a criação e a leitura. Para o historiador há a possibilidade de organizar o texto de forma diferente. No texto de história sempre há notas, citações e referências, mas o leitor não pode controlá-las. O vínculo intertextual permite que o leitor vá até essas fontes quando elas tenham sido digitalizadas. A leitura pode seguir a mesma ordem do autor. A referência pode ser mais do que uma nota no rodapé. O leitor pode escolher o que quer ler e tentar refazer o caminho do historiador.

Eliane Bardanachvili – A gente tem cobrado muito do leitor, da adaptação que ele deve ter em relação às novas tecnologias, mas ao que me parece o autor ainda está com uma visão bem tradicional. Ele só está preparado para escrever livros no papel…

Roger Chartier – Até agora a maioria dos autores utiliza a técnica digital apenas para a transmissão de textos criados no conceito tradicional. Se incorporada ao processo de criação, estes os recursos digitais podem modificar a ficção, o romance e os textos de conhecimento que vão adquirir características impossíveis no universo do papel.

com.br/releases/leitura.htm

Leitura, mídia e hipermídia, espaços de convergência*

Introdução

O lugar da convergência e do diálogo entre leitura e tecnologia é o espaço da cultura, mais especificamente o espaço materializado pelos meios/suportes. Entendidos aqui como materiais nos quais os textos são apresentados ao leitor no ato da leitura. São resultantes de um sistema complexo que contempla desde o surgimento de uma idéia até a concretização de um produto. Esse processo que possibilita os meios é o que compreendemos, nesse trabalho, por tecnologia. Dialogando com a leitura, faz surgir três aspectos bastante recorrentes quando a questão é o ato da leitura: a natureza do suporte em que os textos são dados a ler, os efeitos da forma material do suporte sobre o corpo do leitor e suas implicações para o sentido do texto (BARZOTTO, 1997, p. 08). Considerando essas idéias iniciais, tentaremos refletir sobre o primeiro desses aspectos: a natureza dos suportes em que os textos foram/são dados a ler.

1 – Espaços de convergência.

Entendemos que hoje não há dúvida de que a conjugação de computadores, espaço virtual e hipertexto deu origem a um novo suporte de leitura, o eletrônico / virtual. Neste suporte, constituído na tela do computador, encontramos a escrita basicamente de duas formas. No formato texto, formato semelhante ao dos rolos de papiro, onde também é preciso rolar o texto, assim, podemos inferir que o que temos é apenas uma transposição do livro para a tela, o que sugere uma leitura linear do texto (Manguel, 1997), e no formato hipertexto, no qual o conteúdo é apresentado de forma não seqüencial, linear, o que permite ao leitor uma diversidade de caminhos para a realização da leitura de um único texto. Neste formato concebemos a prática leitora como hyperleitura (Chartier, 1997).

Nesse momento histórico em que estamos vivenciando essas transformações, um primeiro olhar sobre os avanços das tecnologias midiáticas e hipermidiáticas considerando a natural facilidade de acesso ao texto, conseqüentemente, à informação proporcionada por essa (aos que têm acesso, é claro), temos a nítida impressão de estarmos diante de um conflito do qual emergem basicamente três olhares em relação à revolução do texto eletrônico e ao futuro da leitura na atual cultura midiática:

O olhar dos apocalípticos, denominados por Chartier (1997) de futuristas, os quais profetizam a extinção do livro, conseqüentemente, das práticas leitoras do texto impresso.

A telinha da tevê será o local da escrita no futuro, além de ter outras finalidades. Os computadores reinventarão o livro, agora, no formato eletrônico. Segurar uma caneta para escrever vai ser um gesto desconhecido. Papel vai ser um material associado mais a outras coisas do que a veicular escrita. Os textos voltarão a ser basicamente orais ou convertidos em orais para uso comum (Cagliari, 2001).

O dos otimistas que, contrários a essas idéias apocalípticas/futuristas, acreditam na perpetuação do livro apesar dos significativos avanços das tecnologias midiáticas e hipermidiáticas, para Chartier (1997), nostálgicos.

O Livro persistirá enquanto houver leitores. Por isso o anúncio do fim do livro pressuporia o fim da cultura, o fim da cultura letrada, o fim da humanidade (Freitag, 2000, p. 150).

E, por último, o olhar daqueles que não acreditam nem na hegemonia dos livros em relação às mídias e hipermídias, nem na extinção desses causado pela supremacia dessas tecnologias. Esse grupo de pensadores, encabeçados por Chartier (2001), concebe no estado atual das práticas leitoras uma coexistência de muitos meios, com todas as tensões características das mudanças na cultura. Não devemos pensar que essa revolução se vincula unicamente e mecanicamente às transformações dos aparatos, se liga também a transformações culturais, políticas, sociais.

Nesse sentido, na passagem de um suporte a outro, crêem no surgimento de outras práticas leitoras, distintas das já existentes.

Devemos pensar que nós estamos às vésperas de uma mudança semelhante e que o livro eletrônico substituirá ou já substituindo o codex impresso tal como nós o conhecemos em suas diversas formas: livro, revista, jornal? Mas o mais provável para os próximos decênios é a coexistência, que não será necessariamente pacífica, entre duas formas do livro e os três modos de inscrição e de comunicação de textos: o manuscrito, o impresso, o eletrônico. Esta hipótese é sem dúvida mais razoável que as lamentações sobre a irremediável perda da cultura escrita ou os entusiasmos sem prudência que anunciam a entrada imediata de uma era da comunicação (Chartier, 1997, p. 10).

2 – Configurações de leitor

Considerando essas mudanças sociais e culturais advindas dessa passagem de um meio a outro, Santaella (2001) apresenta-nos três categorias de leitor: O primeiro, denominado por ela de contemplativo, caracteriza-se por ser o leitor de livros, aquele que se retira para o gabinete para o ato da leitura; o segundo, movente, é o leitor do jornal, da revista, do folhetim... que lê na rua, no ônibus, no metrô...; o terceiro, o leitor do nosso tempo, da sociedade da informação, a autora denomina imersivo, pois se caracteriza por seus profundos mergulhos no mar dos hipertextos e hipermídias presentes nas nas páginas da Web.

Sobre esse leitor do nosso tempo, imersivo, a autora considera:

É um leitor revolucionariamente novo (...) O internauta está num estado permanente de prontidão perceptiva e sua atividade mental deve estar em prefeita sintonia com as partes motora e cognitiva. A linguagem do mundo digital só existe quando o usuário atua e interfere na mensagem (Santaella, 2001, p. 35).

Coexistência de muitos meios, múltiplas leituras, múltiplos leitores. Na perspectiva de Chartier (2000), é patente que se novas tecnologias estão transformando o meio de produção dos livros e de reprodução dos textos, os usos que deles podemos fazer estão abertos à nossa decisão: humana. Além disso, abre um precedente para concebermos a revolução do texto eletrônico não como um inimigo mortal do texto impresso, mas como uma possibilidade para a indestrutibilidade do texto e para a preservação dos suportes textuais que antecederam o texto eletrônico, como o movimento liderado por Dalai Lama no sentido de digitalizar os textos sagrados do budismo tibetano.

3 – Uma rede de leituras

Com essas idéias revolucionárias, Chartier acaba contribuindo decisivamente para a estruturação de bases para compreendermos as contemporâneas Redes de Leitura, nas quais textos manuscritos, impressos e eletrônicos entrecruzam-se, dialogam, complementam-se. A leitura do mundo precede a leitura do texto, parafraseando Freire (1983, p. 22), e a leitura do hipertexto é precedida por essas outras: a do mundo e a do texto.

Assim, acreditando nisso que assinala Paulo Freire (1983, p. 22) e naquilo que lembra-nos Manguel (1997, p. 20) quando nos diz que Todos lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrarmos o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial, acreditamos que independente do suporte, a leitura continua sendo um caminho necessário e essencial para a compreensão e a atuação do indivíduo no meio social.


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Bibliografia:

BARZOTTO, V. H. Alguns termos do debate sobre suportes de textos, corporalidade e leitura. Revista Nexus. São Paulo, ano IV, nº 06 - p. 7 - 14, 1º sem. 1997.

CAGLIARI, L. C. A escrita no século XXI (ou talvez além disso). disponível on-line em http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/cagliari.html. Acessado em 31/05/2001.

CHARTIER, R. A leitura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Ed.Unesp, 2000.

__________, Em entrevista concedida à jornalista Helena Aragão - site www.no.com.br. Acessado em 11/05/2001.

__________, Os desafios da escrita. São Paulo: Ed.Unesp, 2002.

__________. A morte do leitor. Revista Nexus. São Paulo, ano IV, nº 06 - p. 15 - 24, 1º sem. 1997.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. 3ª ed. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1983.

MANGUEL, A. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

SANTAELLA, Mª. L. Navegando entre Platão e salsichas. Em matéria publicada na Revista da Fapesp, 2001.

PONTES, A. N.

Roger Chatier - O especialista em história da leitura


A história da cultura e dos livros tem uma longa tradição, mas só há pouco tempo ela ampliou seu âmbito para compreender também a trajetória da leitura e da escrita como práticas sociais. Um dos responsáveis por isso é o francês Roger Chartier, 63 anos (leia a biografia no quadro abaixo). "Ele fez uma revolução ao demonstrar que é possível estudar a humanidade pela evolução do escrito", diz Mary Del Priore, sócia honorária do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. "Se a história cultural sempre foi baseada em fundamentos estatísticos ou sociológicos, Chartier a direcionou para as significações sociais dos textos."

Para o campo do ensino da leitura e da escrita, a obra do pesquisador traz grandes contribuições, na medida em que ilumina os diferentes interesses e usos que aproximam leitores, autores, missivistas, escribas etc. de gêneros e formatos de textos também variados. A atenção a essas questões contribuiu muito para dar apoio à base teórica dos trabalhos de educadores como as argentinas Emilia Ferreiro e Delia Lerner, em particular à noção de que a leitura implica uma elaboração de significados que não estão apenas nas palavras escritas, mas precisam ser construídos pelo leitor. Não por acaso, os primeiros estudos de Chartier - em parceria com o historiador francês Dominique Julia - foram sobre a história da Educação, com enfoque principal nas comunidades de estudantes e nas instituições. Essa reflexão levou Chartier a questionar o papel da circulação e apropriação dos textos.

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Na história da leitura, Chartier enfatiza a distância entre o sentido atribuído pelo autor e por seus leitores. Para o historiador, o mesmo material escrito, encenado ou lido não tem significado coincidente para as diferentes pessoas que dele se apropriam. Uma só obra tem inúmeras possibilidades de interpretação, dependendo, entre outras coisas, do suporte, da época e da comunidade em que circula. "Chartier escolheu concentrar-se nos estudos das práticas culturais, sem postular a existência de uma 'cultura' geral", diz Mary Del Priore (leia mais no último quadro).

O historiador se detém em realidades as mais inesperadas e específicas em torno dos livros, da leitura e da escrita ao longo dos tempos. Vai das variações tipográficas às formas primitivas de comércio, das primeiras bibliotecas itinerantes às omissões, traduções e acréscimos sofridos por obras famosas - e dá especial atenção ao aspecto gestual da leitura.

Por isso, considera que a primeira grande revolução da história do livro foi o salto do rolo de papel para o códice, ou seja, o volume encadernado, com páginas e capítulos. Maior ainda, segundo ele, está sendo o salto para o suporte eletrônico, no qual é a mesma superfície (uma tela) que exibe todos os tipos de obra já escritos. Essa é, na opinião dele, a mais radical transformação na técnica de produção e reprodução de textos e na forma como são disponibilizados. As mudanças de relação entre o leitor e o material escrito determinadas pela tecnologia alteram também o próprio modo de significação - antes do códice, por exemplo, era impossível ler e escrever num mesmo momento porque as duas mãos estavam ocupadas em segurar e mover o rolo.

Biografia


Intelectual de grande influência no Brasil

Roger Chartier nasceu em 1945, em Lyon, a terceira cidade da França, filho de uma família operária. Formou-se professor e historiador simultaneamente pela Escola Normal Superior de Saint Cloud, nos arredores de Paris, e pela Universidade Sorbonne, na capital francesa. Em 1978, tornou-se mestre conferencista da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e, depois, diretor de pesquisas da instituição. Em 2006, foi nomeado professor-titular de Escrita e Cultura da Europa Moderna do Collège de France. É membro do Centro de Estudos Europeus da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e recebeu o título de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras do governo francês. Também leciona na Universidade da Pensilvânia, nos EUA, e viaja pelo mundo proferindo palestras. Veio várias vezes ao Brasil, onde é, depois do antropólogo Claude Lévi Strauss, o intelectual francês contemporâneo que mais influencia estudantes de ciências humanas.

As formas de apresentação do texto interferem no sentido

"Chartier compreendeu que um texto não é uma simples abstração e que ele só existe graças à maneira como é transmitido", afirma Mary Del Priore. O pesquisador francês costuma combater a ideia do material escrito como um objeto fixo, impossível de ser modificado e alterado pelas pessoas que o utilizam e interagem com ele. As novas tecnologias lhe dão razão - a leitura na internet costuma ser descontínua e fragmentária, e o leitor raramente percebe o sentido do todo e da contiguidade, que, por exemplo, o simples manuseio de um jornal já gera.

Essa diferença fundamental, que torna a leitura dos livros mais profunda e duradoura, faz com que ele preveja a sobrevivência do formato impresso, apesar da disseminação dos meios eletrônicos. "O trabalho que fazemos como historiadores do livro é mostrar que o sentido de um texto depende também da forma material como ele se apresentou a seus leitores originais e por seu autor", diz Chartier. "Por meio dela, podemos compreender como e por que foi editado, a maneira como foi manuseado, lido e interpretado por aqueles de seu tempo." O suporte, portanto, influencia o sentido do texto construído pelo leito
Ele gosta de enfatizar duas outras mudanças importantes nos padrões predominantes de leitura. A primeira: feita em voz alta à frente de plateias, foi para a silenciosa na Idade Média. A segunda: da leitura intensiva para a extensiva, no século 18 - quando os hábitos de retorno sistemático às mesmas e poucas obras escolhidas como essenciais foram substituídos por uma relação mais informativa e ampla com o material escrito.

Os caminhos de Chartier
Por uma história cultural dos indivíduos

PERGAMINHO EGÍPCIO
 Para o historiador, é essencial a pesquisa em diferentes fontes, em especial, as primárias. Foto: Kenneth Garrett/Getty ImagesRoger Chartier pertence à geração de historiadores que rompeu, nos anos 1980, com a tradição hegemônica francesa, constituída desde 1929 por nomes como March Bloch (1886-1944) em torno da revista Annales d'Histoire Économique et Sociale. Mesmo assim, ele concorda com postulados básicos dos antecessores, como a multiplicação das fontes de pesquisa. Para ele, o trabalho com fontes primárias é fundamental.Por outro lado, sua trajetória se forjou sob o impacto da obra do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), que, segundo Mary Del Priore, "recusa uma história 'global'". Nasceu assim a Nova História Cultural, que se preocupa com a singularidade dos objetos. "Para Chartier, o movimento representa o estudo não das continuidades, como para a primeira geração dos Annales, que analisava os fenômenos em sua longa duração, mas das diferenças e descontinuidades", explica ela.

A importância da leitura na escola de ensino médio:Um diferencial de crescimento e enriquecimento cultural, social, intelectual na formação do cidadão no mundo globalizado

GONTIJO, A. T. de S.
Professor

(I) Considerações Iniciais

A Ciência da Informação está sendo desafiada a pensar a globalização do mundo. No fim do século XX, quando se anunciava o século XXI, ela já se defrontava com dilemas que se abrem com a globalização das coisas, pessoas e idéias. Existem processos e estruturas sociais, econômicos, político-educacionais, culturais e outros que apenas começam a ser estudados. Além do que é local, regional e nacional, colocam-se problemas novos e fundamentais com a emergência da Sociedade da Informação Globalizada. As fronteiras geográficas e históricas, educacionais, culturais e civilizatórias parecem modificar-se diariamente em direções e formas surpreendentes.

Hoje, as informações são registradas nos mais variados suportes físicos, gráficos e não gráficos (livros, coleções de fotografias, discos, filmes, vídeo - tapes periódicos, mapas, etc.) formando o acervo de uma Biblioteca e comprovando que vivemos na era da comunicação de massa, e a informação que nos chega, além dos meios tradicionais (impressos), também através da imagem e do som.

A Biblioteca Escolar, espaço dinâmico e integrante da Escola, envolvida no processo ensino-aprendizagem, precisa estar equipada de material de boa qualidade para desempenhar sua função de agente educacional, proporcionando aos alunos oportunidades de crescimento e enriquecimento cultural, social, intelectual e momentos de lazer através de livros científicos e de leitura recreativa. Os serviços de Biblioteca devem ser planejados e direcionados para a utilização efetiva do acervo que a compõe, estando o profissional bibliotecário comprometido com a Educação, e também, com a preservação de seu patrimônio.

Atualmente, não mais se pode pensar em escrita e leitura como unidimensionais. Sem dúvida o texto escrito e lido sempre teve e continua a ter uma dimensão fundadora inalienável. Mas a ela somam-se muitas outras interfaces que permitem ao leitor, atribuir e construir novos e coerentes significados para o que lê e interpreta.

É na escola, pela mediação do professor e com a ajuda do livro didático que os estudantes aprenderão a ler, a escrever e a enxergar sua própria realidade e a realidade do outro. Essa relação é essencial ao jovem, que pelo contato e exploração de diferentes textos e por meio de ações intermediadas, o aluno passará a interagir com seus pares, a produzir um conhecimento partilhado e com isto consegue representar oralmente e por escrito, sob vários registros verbais, seu pensamento, sua experiência prévia de vida e seu conhecimento coletivo de mundo.


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(II) Objetivos

Ler significa não só ver as letras do alfabeto e juntá-las em palavras, mas também estudar a escrita, decifrar e interpretar o sentido, reconhecer e perceber.

A medida que um bom leitor descobre o significado literal de uma passagem, ele se envolve em vários passos, isto é, faz referência, vê implicações, julga a validade qualidade, eficiência ou adequação das idéias, compara os pontos de vista de autores diferentes, aplica as idéias adquiridas às novas situações, soluciona problemas e integra as idéias lidas com as experiências prévias.

Fascinante! A aprendizagem da leitura sempre se apresenta intencionalmente como algo mágico, senão enquanto ato, enquanto processo da descoberta de um universo desconhecido e maravilhoso. Parodiando Paulo Freire: "ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém educa a si mesmo; os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo". Refletindo melhor se poderia dizer: ninguém ensina ninguém a ler. O aprendizado é, em última instância, solitário, embora se desenvolva na convivência, cada vez mais com os outros e com o mundo, naturalmente!

A leitura é importante em todos os níveis educacionais. Portanto, deve ser iniciada no período de alfabetização e continuar nos diferentes graus de ensino. Ela constitui-se numa forma de interação das pessoas de qualquer área do conhecimento.

A leitura é uma atividade essencial a qualquer área do conhecimento. Está intimamente ligada ao sucesso do ser que aprende. Permite ao homem situar-se com os outros. Possibilita a aquisição de diferentes pontos de vista e alargamento de experiências. É também um recurso para combater a massificação executada principalmente pela televisão. Para ele, o livro é ainda um importante veículo para a criação, transmissão e transformação da cultura.

Através do hábito da leitura, o homem pode tomar consciência das suas necessidades (auto educar-se), promovendo a sua transformação e a do mundo. Pode praticar o exercício dialético da libertação.

O livro pode ser considerado como precioso recurso de ensino. No entanto, não é tão popular como o giz, o quadro negro, o lápis e o caderno. É grande o número de livros editados, com inúmeros títulos diferentes que poderiam, se bem utilizados, concorrer para a melhoria da qualidade do ensino.

O professor tem a liberdade de escolher as obras didáticas para seus alunos em função do conhecimento que tem dos livros, da escola e dos alunos. Pode ainda usar de materiais impressos para o ensino de sua disciplina: dicionário, revistas, jornais, etc... e, até mesmo, elaborar seus próprios textos, incentivando assim as muitas formas de ler.

O livro constitui o mediador na comunicação escrita entre o professor e o aluno. Através dele, se valoriza um ensino informativo e teórico. Por esse motivo, se torna necessário a formação de leitores que possam trabalhar esse material.

Existe no Brasil um volume significativo de produção editorial. No entanto, apenas pequena parcela da população tem acesso aos livros produzidos, levando-se em conta a idade da população e os hábitos de leitura, bem como o baixo poder aquisitivo desta.

O aumento de leitores significa acesso às informações mais objetivas. Com isto passarão a ser críticos da realidade, além de tentar transformar essa realidade a partir do que foi conhecido e construído durante as leituras.

O problema da falta de hábito de ler já começa nas primeiras séries do primeiro grau, em razão dos textos utilizados serem muitas vezes ultrapassados e alienados dos problemas da realidade, não constituindo nenhuma motivação para o aluno. O mercado está cheio de livros didáticos sem sustentação filosófica e teórica e, muitas vezes, ainda conta com a incompetência profissional do educador para orientar corretamente esta prática.

As leituras oferecidas principalmente aos alunos de segundo grau tendem mais para o conservadorismo e reprodução da ideologia ultrapassada.

É preciso lembrar que a educação do ser humano envolve sempre dois fatores: formação e informação. Por isso, os conhecimentos transmitidos as novas gerações devem ser trabalhados com os valores e costumes para que ocorra a sobrevivência e evolução da cultura. Os textos podem ser utilizados na realização de objetivos educacionais tanto para formar como para informar.

O que se pergunta, dentro de uma dimensão pedagógica é "Como desenvolver o hábito da leitura em nossos alunos quando o professor, na sua formação profissional, não aprendeu os procedimentos pedagógicos para este fim, sendo que ele próprio não possui o hábito da leitura?"

A motivação para leitura envolve curiosidade e abertura a novos conhecimentos e informações. Os alunos lêem normalmente para as provas e estas leituras são sempre escolhidas pelo professor.

O segmento adolescente é o mais resistente à leitura. Preferem as informações mais passivas, obtidas pela TV. Este quadro é modificado quando os alunos encontram assuntos específicos de seu interesse. Portanto, é necessário que se valorize a leitura em sala de aula, em todas as disciplinas.

Segundo Rangel (1990), ler é uma pratica básica, essencial para aprender. Nada substitui a leitura, mesmo numa época de proliferação dos recursos audiovisuais e da Informática. A leitura é parte essencial do trabalho, do empenho, de perseverança, da dedicação em aprender. O hábito de ler é decorrente do exercício e nem sempre constitui-se um ato prazeroso, porém, sempre necessário. Por este motivo, deve-se recorrer a estímulos para introduzir o hábito de leitura em nossos alunos.


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(III) A presença e o lugar da leitura na escola

A escola tem por responsabilidade proporcionar aos seus alunos condições para que estes tenham acesso ao conhecimento. Nesse ciclo de criação e recriação do conhecimento, próprio da vida escolar, a leitura ocupa, sem dúvida alguma, um lugar de grande destaque.

Se é relativamente fácil constatar a presença de leitura na escola, torna-se um pouco mais difícil discutir as condições concretas de produção de leitura. A relevância e a necessidade do ato de ler para professores e alunos são irrefutáveis, porém, é necessário analisar criticamente as condições existentes e as formas pelas quais esse ato é conduzido no contexto escolar. O discurso e o bom senso mostram que a leitura é importante no processo de escolarização das pessoas, porém, os recursos reais para a prática da leitura na escola podem, entretanto, contrapor-se àquele discurso.

Assim, a dimensão quantitativa (mais ou menos leitura) e a dimensão qualitativa (boa ou má leitura) do processo, dependem das condições escolares concretas para a sua produção.

O caráter livresco do ensino e as formas autoritárias através dos quais os livros são apresentados em sala de aula, tendem a contribuir com a docilização dos estudantes, gerando a falsa crença de que tudo que está escrito ou impresso é necessariamente verdadeiro.

Os processos de memorização do conteúdo (textos, apostilas ou livros apostilados) impedem que o leitor se torne sujeito do trabalho que executa.

Freire (1985) chama isto de "educação bancária" – o professor passa para o aluno um conjunto de informações apenas para encher a cabeça do aluno. Daí a passividade, o amortecimento da crítica e da criatividade, o consumo mecânico e não significativo das idéias propostas nos textos, etc.

A leitura de textos, tomada como fins em si mesmos, em função da mistificação daquilo que está escrito, gera uma outra conseqüência nefasta para a formação do leitor. Se um texto, quando trabalhado não proporcionar um salto de qualidade no leitor para a sua visão de mundo, tanto no aspecto social, quanto no cotidiano do leitor, a leitura perde a sua validade.

Na leitura onde não existe compreensão de idéias, será melhor uma mera reprodução de palavras ou trechos veiculados pelo autor do texto. Infelizmente, esse tipo de leitura é uma constante nas escolas brasileiras de primeiro e segundo graus e até mesmo no terceiro grau.

Muitas vezes, a estruturação de um trabalho escrito aparece repleto de outros autores, permanecendo no nível de mera edição ou colagem, conforme fulano, segundo sicrano, a voz do estudante não soa dentro do trabalho que ele próprio produziu. Tal problema não ocorre ao acaso e nem por culpa total dos estudantes, é uma decorrência da não integração curricular entre as diferentes disciplinas ofertadas pela escola.

Sem dúvida, a busca do conhecimento pode e deve ser mediada pela leitura de determinados textos, porém, o ato pedagógico vai exigir muito mais do que isto.

A formação e manutenção de bibliotecas escolares ainda não se transformou em preocupação política na realidade educacional. Além disso, são poucos os professores que visitam a biblioteca para conhecer os seus recursos e tentar um trabalho integrado com os bibliotecários. Essa prática seria um meio de colaborar com os alunos para a investigação de determinados assuntos.

O caráter propedêutico do ensino brasileiro conjugado ao fenômeno da transferência de responsabilidade (repasse da aprendizagem real dos alunos para a série seguinte ou grau) constituem o cerne daquelas expectativas, fazendo com o que o professor de uma determinada série pressuponha a existência de habilidades pré-adquiridas pela turma em séries anteriores.

Muitas das reclamações dos professores, do aluno que chega às suas mãos sem pré-requisitos, são frutos de radical apego ao programa pré-estabelecido. O aluno tem que seguir em frente apesar das dificuldades encontradas.

Os alunos, numa situação de desespero, principalmente por sentirem-se incapazes de realizarem as tarefas propostas, desmotivam-se, aparecendo como resultado a repetência e a evasão escolar. Surge também o "pacto da mentira": os alunos fingem que leram e compreenderam os textos e os professores fingem que acreditam. Daí a importância de eliminar os "ledores" e formar os "leitores", tão necessários a nossa sociedade brasileira.

Mostrar o valor da leitura aos educandos não é uma tarefa difícil, pois esse processo, bem estruturado, com supervisores e/ou bibliotecários, significa uma possibilidade de repensar o real pela compreensão mais profunda dos aspectos que o compõem.

No ensino, não basta discutir ou teorizar o valor da leitura. É preciso construir e levar a prática que a leitura venha a ser cada vez mais sedimentada na vida do educando.

Ler é um ato libertador. Quanto maior vontade consciente de liberdade, maior terá que ser o índice de leitura.

O professor brasileiro, dado a sua condição de oprimido, também é carente de leitura. O número excessivo de aulas bloqueia os momentos para leitura. Além disso, o salário não é suficiente para comprar livros e enriquecer o seu intelecto.

Não existem bibliotecas especializadas para atender aos cursos de licenciatura, sendo que esses tocam por alto a pedagogia da leitura.

Um dos efeitos da leitura é o aprimoramento da linguagem, da expressão, tanto individual como coletivamente.

Uma sociedade que sabe se expressar, sabe dizer o que quer, é menos manobrável.

No plano familiar, verifica-se a influência de uma estrutura social onde impera o utilitarismo, o consumismo e a alienação. A troca social de informações é preenchida com o uso de televisão, vitrine de moda e conceitos de filmes.

A crise do livro e da leitura no Brasil é uma característica normal dentro da classe trabalhadora. Essa disfunção na área de leitura, em verdade cumpre uma função muito clara, a de bloquear o crescimento e a emancipação do povo.

A reflexão a respeito disto fica a nível de que como instrumento facilitador do desencadeamento do habito de leitura, a biblioteca brasileira, de modo geral, carece de estruturação para assumir tal responsabilidade.


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(IV) Considerações finais

Podemos considerar três motivos básicos para a valorização da leitura: (a) Informação, (b) Conhecimento, (c) Prazer, que estão associados ao fato de que o texto a ser lido e criticamente analisado por um leitor é sempre um trampolim para uma compreensão mais profunda e objetiva do contexto humano. Considerando que qualquer linguagem sempre possui um referencial de mundo/realidade, ser leitor é capaz de apreender os referenciais inscritos em qualquer mensagem e também os existentes num texto, o que significa compreender a dinâmica do real e compreender-se como um ser que participa desta dinâmica.

A Reforma do Ensino, consubstanciado na Lei nº: 9394/96, cuja direção aponta para a educação formativa do cidadão, preocupada com os métodos e recursos, portanto, mais educação do que adestramento, visando fornecer, através do ensino unificado de primeiro e segundo graus, a formação necessária para o desenvolvimento das potencialidades do educando, extinguido a escola verbalista e centrada no professor. Preconizou uma educação onde o aluno é o principal agente, sob orientação do professor. No entanto, para que os ideais da Reforma sejam alcançados, é preciso que a escola seja estruturada de modo que a aprendizagem dependa em grande parte da leitura de textos.

A consecução desses ideais parece exigir uma reflexão mais profunda sobre a aprendizagem da leitura, posto que o ensino da leitura é um processo contínuo e que o professor, independentemente da disciplina, responde em grande parte, pelo êxito ou fracasso desse processo.

Um exemplo de valorização da leitura é apresentada pelo Projeto Farol do Saber, nome inspirado na célebre Biblioteca de Alexandria, que constituiu-se, na Idade Antiga, em importante centro cultural e econômico, aproximando povos e iluminando a Antigüidade com a luz do conhecimento. O referido projeto, elaborado e executado pela Secretaria Municipal de Educação de Curitiba, prevê a implantação de mini bibliotecas de bairros, diferente porém de uma biblioteca comum. É um ponto de referencia disseminador da cultura e do saber, onde as atividades propostas são desenvolvidas de maneira a despertar o interesse e a participação voluntária de seus freqüentadores.

Os Faróis do Saber surgem como antídoto ao conhecimento "acabado", "pronto" e "certo", ao discurso de "certezas" do mestre, para se tornarem um espaço gerador do espírito crítico e de questionamento, propiciando o acesso ao livro, a recriação do conhecimento.

Os objetivos dos Faróis do Saber são:

(a) oportunizar o acesso aos bens culturais, resgatando o fenômeno literário e o prazer do texto;

(b) criar condições que favoreçam a prática da leitura, pesquisa, informação e reflexão, instrumentos para a formação e exercício da cidadania;

(c) suprir as bibliotecas de livros, periódicos e bens culturais, tendo em vista o interesse e as expectativas do usuário.

Claro está, para que a situação de carência de bibliotecas e desvalorização da leitura mude, é preciso muito mais que isso. O projeto Farol do Saber abrange só Curitiba, a capital. Quando teremos Faróis do Saber espalhados pelo Paraná todo? Pelo Brasil todo? Enfim, quando haverá uma política educacional orientada para a capacitação crítica dos indivíduos?


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(V) Referências Bibliográficas

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1989.

AGUIAR, Vera Teixeira de. Leituras para o primeiro grau: critérios de seleção e sugestões. In: ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, p. 85-106, 1991. (Série Novas Perspectivas).

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: de leitor ao navegador. São Paulo, Unesp, 1999.

DIAZ BORDENAVE, Juan, PEREIRA, Adair Martins. Estratégias de ensino-aprendizagem. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1978.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 10 ed. São Paulo: Autores Associados Cortez, 1985.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

LAJOLO, Marisa. Leitura em crise na escola, Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

MANGEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Cia das Letras, 1997.

MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. 16. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. (Série Primeiros Passos).

RANGEL, Mary. Dinâmica de leitura para sala de aula. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1990.

REYES, Antonio Basanta. Temas para debate. Espanha-Madri, 2000.

SILVA, Ezequiel T. Leitura na escola e na biblioteca. Papirus, 1986.

SILVA, Ezequiel T. Elementos de pedagogia da leitura, São Paulo: Martins Fontes, 1993.

SILVA, Ezequiel T. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova pedagogia da leitura. São Paulo: Cortez - Autores Associados, 1981.

SUIADEM, Emir. Biblioteca Pública e Informação à Comunidade. São Paulo: Global, 1995.

Especial Dia Nacional da Leitura: Chat com Lucila Pastorello

Moderador 10:53:46
Na semana em que se comemora o Dia Nacional da Leitura, 12 de outubro, o EducaRede e o Instituto Ecofuturo promovem entrevistas com especialista em linguagem e escritores de livros infanto-juvenil. Veja a programação e participe!

Lucila Pastorello é fonoaudióloga, mestre em Psicolingüística pela Universidade de São Paulo, bolsista de doutorado da FAPESP, pesquisando sobre leitura em voz alta. Consultora de linguagem em projetos de incentivo à leitura e autora de diversas publicações sobre o tema.

Moderador 14:54:57
Boa tarde a todos! Vamos iniciar o chat com Lucila Pastorello.

lucilapastorello 14:56:08
Boa tarde! Estou pronta para ler vocês!

Moderador 15:01:33
Boa tarde, Lucila, seja bem-vinda. Vou começar fazendo uma primeira pergunta e convido nossos internautas a enviarem questões e comentários a você.

Moderador 15:02:35
Como incentivar a leitura desde a primeira infância? O que os pais podem fazer?

Moderador 15:10:00
Elaine diz: Boa tarde, Lucila. Vi no seu breve currículo "pesquisando sobre leitura em voz alta". O que implica essa leitura em voz alta?

Moderador 15:10:25
Chico diz: Imaginemos uma casa com mais de uma criança. O ideal é que o adulto leia para todas ou estimular que elas façam esse rodízio de leitura em voz alta e leiam uma para as outras?

Moderador 15:14:31
Esta entrevista ficará disponível para consulta em "Buscar entrevista", no canal Bate-papo do Portal EducaRede.

lucilapastorello 15:15:27
A leitura não é apenas um conjunto de habilidades, mas é uma prática social. Podemos incentivar a leitura desde sempre: ler para o bebê que está na barriga até para nossos pais, de vista cansada. No caso da crianças, podemos ler em voz alta, ler junto com a criança que já está alfabetizada e descobrir diferentes formas de ler com as crianças.

lucilapastorello 15:16:32
Oi, Elaine, estou pesquisando os efeitos de ler em voz alta tanto para quem lê, quanto para quem escuta.

Moderador 15:16:46
marcia diz: Leio em voz alta para o meu filho desde bebê. Hj ele tem 8 anos e em sua avaliação consta q ele gosta mais de ouvir histórias do que lê-las. Será que exagerei na dose? Como evitar cair nessa cilada?

Moderador 15:17:56
Guiliana diz: Boa tarde, Lucila! Mesmo fazendo a leitura em voz, a criança não mostra interesse e sente-se tímida. Existe outro método?

lucilapastorello 15:18:02
Chico, Boa tarde! O ideal é que se leia. Você pode criar diferentes movimentos de leitura, todos valem: os mais novos podem ler imagens , os mais velhos, a escrita, por exemplo.

lucilapastorello 15:22:06
Olá, Márcia. É muito mais fácil ouvir do que ler, para qualquer garoto de 8 anos. Tenha calma, insista; ele é um leitor em formação... aos poucos seu filho vai aprender a ser mais fluente, a poder escolher ouvir sua própria voz interna, em silêncio e vivenciar uma intimidade com o autor, logo será um leitor. Dê o exemplo: leia para si mesma, mas não deixe de oferecer leitura para sua criança!

Moderador 15:23:42
marcia diz: Como estimular o hábito da leitura, que exige dedicação de tempo e concentração, em crianças que estão acostumadas com a rapidez das tecnologias e games?

lucilapastorello 15:25:34
Oi Guiliana: não sei a idade dessa criança, nem por quantos anos você está tentando. Uma dica: não pense em receber da criança, pense em oferecer. E uma última lembrança: quantas vezes você já chamou sua criança pelo nome e ela não respondeu, ou pediu que fosse tomar banho? E você desistiu porque ela não respondeu?????

lucilapastorello 15:29:24
Marcia, ter tempo combina com disciplina; não é preciso duas horas diárias de leitura de clássicos! As crianças ainda não estão imunes a um livro divertido, curioso, emocionante. E uma lembrança: games e tecnologia não são inimigos da leitura, são formas de ler.

Moderador 15:30:21
Quem lê mais escreve melhor?

lucilapastorello 15:31:45
Sem dúvida nenhuma, quem lê mais escreve melhor, pois quem lê está também escrevendo um pouco, está formando um texto.

Moderador 15:33:05
zeca diz: E para os adultos, que não gostam de ler, ainda há salvação? O que você indica?

Moderador 15:33:22
marcia diz: Você poderia explicar melhor o que significa esta afirmação: "games e tecnologia não são inimigos da leitura, são formas de ler".

lucilapastorello 15:37:23
A leitura, em um sentido amplo, envolve a criação de sentidos a partir de um material visual. Quando lemos um texto escrito, por exemplo, lemos as letras, mas também interessa o tipo de letra, o suporte (se é um jornal, um livro, um bilhete no guardanapo...); lemos também as imagens não verbais, como desenhos, ilustrações, fotografias, cores, movimentos. O que estamas fazendo agora envolve leitura e novas tecnologias, nê? Também games oferecem um tipo de leitura imagética e cinética (de movimento) que é uma forma particular de leitura.

lucilapastorello 15:39:10
Oi Zeca, salvação sempre há...resta saber se o adulto quer mesmo ser salvo.... contos de suspense, ou humor podem dar certo pra começar...

Moderador 15:41:07
zeca diz: É bom também ler notícias, informações e não só histórias?

Moderador 15:41:47
zeca diz: eu gosto muito de ler jornal e revista.

Moderador 15:43:04
Enviem suas perguntas e comentários! Nosso chat será encerrado às 16h.

Moderador 15:43:43
marcia diz: Conheci uma moça, já adulta, que não conseguia acompanhar as legendas dos filmes. Isso é por deficiência de leitura?

lucilapastorello 15:44:07
Zeca, é natural...informações e notícias são importante para podermos estar no mundo; discussões a partir da leitura de textos informativos também são interessantes; o ideal é começar com textos menos complexos e ir esquentando a coisa aos poucos...

lucilapastorello 15:45:21
Zeca, que bom! continue lendo, mas experimente uma crônica do Luís Fernando Veríssimo um dia desses...

Moderador 15:45:51
Liane diz: Meu filho tem 2 anos e meio, e leio com ele desde bebê. Mas agora ele começou a descobrir os desenhos na televisão, o que também acho legal ele conhecer, mas fico sempre em dúvida de qual a "medida". Ele tem pedido para "assistir só um pouquinho mamãe", e não quer sair da frente da TV...acho ele muito pequento para já ficar tão "viciado", já que eu mesma não sou muito ligada em televisão, mas o pai é!!!

lucilapastorello 15:45:52
Marcia, é sim, esta moça tem dificuldades em ler.

Moderador 15:46:24
zeca diz: Valeu a dica. Vou experimenta sim.

lucilapastorello 15:48:51
Oi Liane, seu filho também é filho do pai dele...deixe que ele assiata sua TV, mas combine horários; é desde pequeno que ele vai aprender que temos que organizar nosso tempo, é que não podemos fazer tudo de que gostamos a qualquer hora. Vejamos essa nossa conversa, que tá ficando boa e logo vai ter que terminar...

Moderador 15:49:52
zuleica diz: Sou professora na rede pública e dou aulas para adolescentes. Vejo que eles têm muitas dificuldades em ler textos simples. Leciono Matemática e não sei como lidar com a situação. O que você sugere?

Moderador 15:50:00
marcia diz: E esta deficiência seria pela falta de hábito de leitura?

Moderador 15:51:28
Liane diz: Ok, tens razão, obrigada Lucilla!

lucilapastorello 15:52:14
Zuleica, a dificuldade que você encontra é compartilhada por todos, basta ver os índices do INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional); discutir com os colegas na escola e propor alternativas já pode ser um começo...

lucilapastorello 15:54:04
Marcia, o hábito da leitura sem dúvida interfere, mas pode ser alguma questão específica de linguagem. Se estiver incomodando, procure um fonoaudiólogo.

Moderador 15:56:05
O Chat será encerrado daqui 5 minutos, às 16h. Enviem suas últimas perguntas e comentários a Lucila.

Moderador 15:57:57
Liane diz: Você poderia indicar alguns títulos ou autores para crianças de 2 anos e meio? Ou há algum site/blog seu onde vc dá dicas desse tipo?

lucilapastorello 15:59:57
Liane, livros de imagens, sem texto ou com textos curtos são legais, procure nos sites de algumas editoras que trabalham com livros infantis, como a Cosac-Naif, a Cia. das letrinhas, a Brinquebook... Passe umas horas em livrarias e escolha o que você gosta! Boas leituras.

Moderador 16:00:30
Liane diz: Obrigada!

Moderador 16:01:06
Chegou a hora de encerrar nosso bate-papo. Muito obrigado, Lucila, por nos ler e esclarecer tantas questões importantes. Agradecemos também a participação dos internautas.

lucilapastorello 16:01:31
Liane, em breve estarei comentando dicas no site Leitores Públicos, o site ainda está em construção...

lucilapastorello 16:02:21
Como o tempo voa!!!!!!! Mesmo sentada na cadeira! Obrigada a todos!

Moderador 16:02:30
zeca diz: Foi muito bom esse chat. Tchau.

Moderador 16:02:38
Liane diz: ok, visitarei o site!

Moderador 16:03:16
Chat encerrado.

Leitura, leituras: uma apresentação

Foi sensível ao longo de todo o século XX uma preocupação crescente com aquilo que se designou chamar "cultura do livro" ancorada numa mais abrangente cultura da leitura, caracterizadora da cultura ocidental. Interrogar-se o que sejam os elementos dessa cultura face ao crescente relativismo cultural, marca indelével de um processo de desconstrução do sujeito fundado sob a égide de Shopenhauer e Nietzsche, é interrogar como pode a leitura, vista enquanto processo cognitivo, testemunhar de um dado fundador da nossa contemporaneidade: o homo liber, tal qual a designação de Chartier, está hoje mais próximo de uma espécie de lobotomia dos seus processos culturais do que da exploração desses processos com vista à motivação dos afectos e activação das suas faculdades mentais, tal como seria desejável. Nesse enquadramento, após o que a galáxia de Gutenberg promove de abertura às mundividências, é possível considerar que a leitura, para lá do que é processo cognitivo se inscreve num conjunto de práticas ritualizadas que exprimem não tanto um saber cultural, mas um gesto simbólico que, do lado das camadas sociais mais desfavorecidas persegue uma ideia de cultura vista como poder "inteligente", ao passo que das camadas sociais instruídas, mormente das elites intelectuais, a ideia de leitura beneficia de um saber que domina aquelas; saber esse preocupado agora não tanto em expandir a leitura na sua dimensão humanista, antes sublinhando na leitura o que ela tem de saber utilitário, prático, não sendo por isso de estranhar que Steiner afirme que o tempo da incultura chegou, até pela relativa generalização de que "ler" é para todos.

Assim, à pergunta o que é a leitura dever-se-á ter em conta que leitura é, à luz do que seria próprio dizer dos discursos, tudo. Sendo tudo, a leitura pode correr o risco de absolutizar a sua subjectividade, alçando aos paroxismos do relativismo práticas também de escrita que se fundam numa ideia de que para escrever não necessário ler. São assim os dias que correm... Ora, do ponto de vista do ensino e do dado cultural "leitura", tem-se insistido no aspecto pluriforme da leitura, apostando-se no facto de a leitura ser de per si um fenómeno que não é estático, não linear, "que não funciona segundo o modo da evolução linear, mas que tem os seus movimentos lentos e suas mutações mais bruscas". Essa pluriformidade convoca desde já várias reflexões que suscitam, como vem sendo prática comum, que a morte do livro está próxima – o que não seria de estranhar dada a crise do sujeito contemporâneo como refere McLuhan – que sublinham a crise do livro e, consequentemente da leitura. Como nos diz José Afonso Furtado "essa crise afectaria hoje uma grande variedade de competências, de atitudes e de representações face à leitura", traduzindo em práticas "cada vez menos consolidadas e hábitos de familiaridade com o estrito cada vez mais escassos".Acresce o facto de que a essa crise se vêm juntar dados estatísticos que, paradoxalmente, traçam um quadro negro, particularmente no caso português, no que diz respeito à leitura, quando precisamente se fixou uma escolaridade mínima obrigatória, resultando gravosas as dificuldades que muita da população (não só) escolar tem em estabelecer relações lógicas e proposicionais, em fundamentar criticamente juízos e valores, em dominar competências de leitura e escrita e de cálculo, fomentando a designação de analfabetismo funcional para lá dos limites da sua definição; crendo-se até que o utilitário e o pragmático são, em rigor, as chaves do sucesso na vida prática. Do ponto de vista da sociologia da leitura interessaria compreender os modos de apropriação do escrito e do lido, adentro de uma perspectiva mais geral que convoca as ciências da educação para um combate que visa, antes do mais, como afirma Martine Poulain, "responder às interrogações sociais e políticas". Esse relacionamento com a sociologia da leitura levanta questões que se prendem com o próprio objecto da leitura – o livro – e com questões de método (que aqui não serão exploradas), bem como promove questões relacionadas com a capacidade de chamar ao campo vasto da leitura outros contributos disciplinares, entre os quais se realçam os contributos dados pela Teoria da Literatura, a Estética da Recepção, a Hermenêutica, a Teoria da Comunicação e as Ciências da Educação, adentro delas a Pedagogia da leitura.

Leitura ou leituras, eis uma das pertinências críticas que trazem a lume esses estudos correlatos, querendo saber-se em que medida pode a leitura facultar a facilidade em diversas competências, transversalmente propondo à resolução das mais variadas situações problemáticas, estratégias metacognitivas que, em rigor, fazem situar a leitura no campo da psicolinguística ou da Psicologia Educacional, sem dúvida necessárias para uma melhor compreensão da diversidade que constitui a leitura lato sensu. Mas a leitura, entendida historicamente pressupõe que se comprrenda o livro enquanto medium do processo social e cultural e como instrumento, seguindo Escarpit, da sociologia do livro, da psicosociologia da leitura e da teoria da leitura, modalidades interessadas em descobrir "a partilha social do livro", olhando-se para o objecto como complexo passível de várias abordagens nas quais leitura não parece ser senão conceito que liberta os investigadores das mais variadas áreas das Ciências Sociais da circunscrita tarefa de ver o fenómeno leitura/livro/literatura à luz de um predeterminismo de escola ou de pensamento. Tudo é leitura, e a única leitura correcta é a que relê, como afirma Abel Barros Baptista e como não deixa de ser focado por Borges e sua ideia de biblioteca. Desse ponto de vista a leitura é situação e gestualidade, é rotura com a estabilidade e afirma-se enquanto dinâmica de rituais que aobrigam e imputam ao processo cognitivo uma dada forma de estar, de ler e de ver o mundo, como se esse mundo fosse "mundo aberto em forma de livro", como se esse mundo visto fenomenologicamente fosse, como afirma Barbier "infinidade de leituras", consoante a natureza dos volumes, dos textos lidos, das pessoas que os lêem, dos momentos e situações, das necessidades... inerentes a esse próprio mundo. Desse modo o mundo-livro é um mundo pronto a escrever-se, a ser escrito no acto de leitura, considerando-se que toda a leitura é prática não-individual, por muito que se insista que estamos sós quando lemos e quando reescrevemos o mundo. Daí que a pluralidade do termo leitura seja a expressão da sua ambiguidade conceptual, porquanto sejam difusas as suas práticas, e porquanto leitura seja técnica que descodifica determinado código de signos, quer na medida em que os desvela, quer na medida em que "ler" seja criar novos sentidos para os signos lidos. Leitura, seguindo-se essa inversão, seria mais do que a descoberta desse código, seria mais um acto de criativa voluntariedade, pressupondo-se uma aprendizagem a dois tempos cognitiva e social. Ler é, para Barthes, "uma forma de gestualidade", estabelecendo-se que o valor de criar seria coextensivo à criação pela escrita, citando: "a ideia de que a escrita seria ainda manual e leitura mental, abstracta", resultando claro que escrever seria ler, ou melhor, ler manualmente, enformando-se na escrita o mesmo princípio activo e cognitivo que colocaria também o corpo numa contígua posição de reflexão sobre o papel. As relações entre Leitura e Escrita derivam, desta feita, das determinantes da leitura, pressupondo-se que leitura é: forma de sabedoria, comunicação, acto de pensamento, acto de conhecimento, interpretação enquanto descoberta dos sentidos duplos do texto, tornando-se, como diz José Afonso Furtado, "via", isto é, "iniciação", estendendo a leitura a um plano de religiosidade em que leitor e livro estão em comunhão com o auctor, o detentor da autoridade da palavras do texto, Deus, em última instância. Ler seria ainda, é ainda, para lá da sua dimensão ascética, operação cohnitiva em que entre livro e leitor se produz um caminho perceptivo dependente da fisiologia do olhar, em que sacadas e fixações condicionam leitor, em que conhecimento prévio do mundo (linguístico, textual e do mundo) conduzem o leitor a uma dada compreensão do livro lido; seria ainda actividade crítica, desenvolvimento de uma inteligència dialéctica em que ao se interrogar o texto se responde com o interrogar dessoutro texto: o leitor. Ler é restituição de sentidos, actuando-se seja do ponto de partida da intentio opera, da intentio auctor ou da intentio lectoris; ler como conflagração de trocas de leituras, como prazer do texto, valendo-se todo o acto de ler desse acto outro que escreve e que coloca no domínio também do escrito a actividade ineterpretativa do mundo. Falar-se-ia de objectivos da leitura, sendo possível defender a ideia de que esses objectivos correspondem a tipos de leitores, chamando-se à colação o leitor-modelo de Eco como paradigma do leitor proficiente? Dessa proficiência, em que os modelos de leitura ascendente e descendente se misturam, seria possível falar-se em leitura-modelo? O caso é fascinante e incómodo porquanto não exista leitor-modelos, como declara Eco em Lector in Fabula, como da leitura apenas se poderá dizer que dado o seu plural semântico é impossível condensar leituras em leitura.

Assim, a leitura propõe-se (como se dominando o leitor?), cinco (mas não haverá mais?) objectivos de leitura: de prazer, de informação, de aperfeiçoamento, de aquisição de valores e de perspectiva crítica. A esta tipologia da leitura, juntam-se com Compagnon e Barthes, a leitura pela desleitura, aquela que derivaria do simples facto de que no prazer de ler se pode achar um maior prazer em não ler. De facto, adentro desta tipologia, leitura seria acto, actividade, discurso, excurso, percurso, incurso, curso, recurso, recursividade, conforme ao que poderíamos achar na leitura graus de leitura e de interpretação: leitura literal, operatória, enquanto "se para nos sinais do texto escrito", ler como decifração do texto, dos signos enquanto veiculadores de sentidos vários. Um outro nível seria o da compreensão do sentido desses signos, opondo-se interioridade a exterioridade da leitura, separando-se necessidade de vontade, porque o primeiro nível é trivial (lê-se porque é necessário), porque o segundo nível é acto de prazer, vício não punível... Existe claramente um conteúdo ideológico nestes graus de leitura, nessa tipologia, ideologia essa que convoca uma hierarquia essa que convoca uma axiologia da leitura e, assim o cremos, também da escrita.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Vinícius de Moraes

D I A L É T I C A
"É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste..."
A rosa de Hiroxima


"Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada."



quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Leitura de palavra, leitura de mundo, leitura de imgem. A formação do formador de leitura

Introdução

Quando falamos em leitura, o que primeiro costuma vir à mente é a compreensão das palavras e o processo de alfabetização. No entanto, já nos alertava Paulo Freire (2003) que leitura é bem mais que decodificar palavras: é ler o mundo. E, neste mundo moderno, repleto de mensagens imagéticas, a leitura também envolve ler imagens.

Embora seja uma atividade complexa que permeia grande parte da vida numa sociedade urbana, industrializada e tecnológica, a leitura como processo, que requer uma metodologia e teoria próprias, não ocupa lugar de destaque nos currículos de formação de professores, muito além das fronteiras da alfabetização. No caso das línguas estrangeiras, cuja orientação teórico-metodológica dos parâmetros curriculares nacionais sugere seu amplo trabalho na educação básica, sua presença é, talvez, mais rarefeita. Abordagens que contemplem, além disso, a inclusão de discussões sobre a leitura de imagens e dos aspectos do mundo de maneira geral são ainda mais escassos, se não inexistentes.

Este trabalho propõe refletir sobre o problema e as implicações dessa carência na formação de professores de espanhol como língua estrangeira, a partir da realidade de sua formação continuada em nível de especialização. Apresentamos para tal, considerações sobre dados coletados numa turma caso da Especialização de uma IES pública, no ano de 2005, numa disciplina específica sobre leitura, e sobre a análise de seus trabalhos finais.



Compreensão leitora e formação docente

A língua estrangeira (LE) volta a ganhar, com a nova LDB (Brasil, 1996), destaque entre as disciplinas curriculares do ensino básico. Trata-se de uma matéria obrigatória, mas que, devido à defesa do plurilingüísmo, é apresentada não sob a forma uma língua específica a ser ensinada compulsoriamente, mas sim como um elenco de opções entre idiomas estrangeiros determinados pela comunidade, dentre o qual uma deve ser escolhida, então, pelos alunos. Sua inclusão corresponde à crença no seu papel como instrumento de interação entre povos, acesso a culturas e conhecimentos diversos, além de uma forma de potenciar o desenvolvimento discursivo, a cidadania e o autoconhecimento, pelo contato com o outro.

Recentemente, em agosto de 2005, o presidente sancionou a lei sobre o ensino da língua espanhola (Brasil, 2005), que legisla sobre a necessária oferta desse idioma por parte dos estabelecimentos de ensino, sem, contudo, limitar a liberdade de escolha dos estudantes. A ênfase no espanhol indica uma disposição ao relacionamento mais estreito com nossos vizinhos hispano-americanos e com nossas raízes ibéricas comuns.

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (Brasil, 1998; 1999), em especial o de Ensino Fundamental, o enfoque para o ensino-aprendizagem de LE deve assumir uma abordagem socio-interacional, apoiar-se numa proposta comunicativa e enfatizar, ao menos, o desenvolvimento da competência leitora. A leitura é vista como um instrumento de aproximação mais imediato à realidade do outro estrangeiro e aos saberes que circulam na sociedade moderna e são veiculados através da escrita. Isso não invalida o ensino das demais habilidades lingüísticas, sempre que o contexto o favoreça ou demande, mas fixa um aspecto mínimo a ser trabalhado (Brasil, 1998).

Estas medidas legais indicam uma política lingüística do governo e demandam por parte de professores e seus formadores um cuidado com os currículos de LE. Nesse sentido, chamamos atenção para o tema da compreensão leitora, que, em geral, não tem sido priorizado nos currículos universitários de Letras[1] (Junger, 2002; 2004).

A leitura, proposta nos PCNs a partir do modelo interativo, deve ser entendida como um processo no qual a informação flui tanto do texto para o leitor quanto do leitor para o texto. Observa-se uma interação entre autor/texto/leitor, na qual o sujeito leitor não permanece apenas num papel passivo de decodificador de palavras, ou frases. Todo o seu conhecimento de mundo pode ser ativado para elaborar e verificar hipóteses de leitura sobre o assunto do texto; negociar ou inferir significados; hierarquizar o texto, separando idéias principais e secundárias; estabelecer objetivos de leitura e definir níveis de acesso ao material lido segundo os mesmos; associar imagens e texto verbal na construção de sentidos, entre outros procedimentos (Brasil, 1998; Kleiman, 1996; Moita Lopes, 1996).

Ocorre que os programas universitários não costumam incluir essa prática leitora, nem a teoria subjacente à mesma, em seus programas de Língua. No caso de espanhol, podemos observar, recentemente, casos escassos desse conteúdo. Nas disciplinas de Prática de Ensino de Espanhol, a leitura aparece com maior freqüência que nas disciplinas de Língua Espanhola, mas, ainda assim, sem protagonismo e com pouco tempo a ela dedicado[2]. O contato com professores de diferentes níveis de ensino em eventos acadêmicos, jornadas de Extensão ou capacitação institucional, bem como em Especializações tem confirmado essa lacuna na formação de docente. Os próprios professores reconhecem a novidade de muitas informações teóricas e práticas a respeito do ensino-aprendizagem de leitura. Também informam sobre as dificuldades de implementar o trabalho de compreensão leitora, entre outras razões pelas dificuldades que os alunos parecem trazer na leitura em sua própria língua materna. Há casos em que a dificuldade recai sobre a crença de que só se pode ler quando já se possui um vasto conhecimento sistêmico da língua, o que pode prejudicar/atrasar o processo de ensino de leitura no caso do ensino de LE.

Quanto ao tema do desconhecimento da LE, cabe ressaltar que, segundo os PCNs (Brasil, 1998), a leitura envolve diferentes tipos de conhecimento: enciclopédico (de mundo), estratégico (relacionado aos procedimentos leitores), textual (sobre as estruturas e características dos diferentes textos) e sistêmico, ou seja, lingüístico. Isso significa que, de fato, é requerido o conhecimento de vocabulário e do funcionamento de estruturas gramaticais para o desempenho leitor. No entanto, também é certo que deficiências nesse campo podem ser compensadas pelos demais conhecimentos e que um domínio formal e normativo da língua não garante a proficiência leitora (Moita Lopes, 1996).

Em última análise, a leitura é um processo complexo, que não se limita à decodificação de signos e palavras, envolvendo uma leitura de mundo, uma atribuição e negociação de significados. Portanto, necessita ser sistematicamente trabalhada, segundo bases teóricas claras, pois só se aprende a ler, lendo (Freire, 2003). Sendo assim, como cabe ao professor o papel de orientador e incentivador de seus alunos durante o desenvolvimento dessa habilidade, sua formação precisa incorporar pressupostos teóricos e procedimentos práticos que o preparem para a tarefa.



Leitura de imagens e compreensão leitora

Tomando a Internet como base para uma pesquisa informal sobre a oferta de disciplinas dedicadas à prática da leitura de imagens, podemos perceber sua ocorrência, prioritariamente, em cursos de licenciatura ou pós-graduação em Artes Visuais, ou em bacharelados nas áreas de Comunicação e Ciências Sociais. Um número muito restrito de Faculdades de Pedagogia vem incluindo em suas grades curriculares a disciplina de Educação Estética, porém, em sua maioria, limitam-se à Prática de Ensino em Educação Artística.

O ensino de Artes vem passando por importantes transformações metodológicas e conceituais. Da ênfase no trabalho artesanal, ao estudo de técnicas pictóricas ou o livre-fazer, a busca por novas bases epistemológicas, durante a década de 1980, resultou na criação de metodologias pautadas nas pesquisas contemporâneas da Arte. Ana Mae Barbosa, arte-educadora da Universidade de São Paulo, a partir das experiências educativas do Museu de Arte Contemporânea / USP, durante sua gestão como diretora, e em revisões de movimentos estrangeiros como as Escuelas al aire libre, do México; o Critical Studies, da Inglaterra e o DBAE (Discipline Based Art Experience), dos Estados Unidos, apresenta a Proposta Triangular para o ensino das Artes, que viria a ser o referencial para a Arte-Educação brasileira. Apoiada em três princípios: o fazer artístico, a leitura de obras de arte e a contextualização, essa abordagem metodológica está baseada na inter-relação entre diferentes saberes e em questões estéticas e culturais da pós-modernidade (Meneguetti, 1999).

O estudo da cultura pós-moderna, a chamada cultura visual, vem-se desenvolvendo nas mais diferentes áreas do conhecimento. Manguel (2001) afirma que nossas experiências diárias são permeadas de imagens de todos os tipos e que as lemos constantemente – códigos textuais e gráficos, expressões fisionômicas, elementos da natureza. Portanto, o conceito de leitura é muito mais vasto do que o usualmente empregado no senso comum. Segundo o escritor, ao contrário do que ocorria durante as sociedades de imagens da Idade Média ou do Renascimento, hoje, o nosso vocabulário não corresponde ao das imagens veiculadas massivamente, como propaganda do mercado de consumo. “Somos simplesmente receptáculos para o lixo da propaganda” (Manguel, 2001). Tornar-se decodificador desse produto, possibilita a desconstrução dessa fórmula, resgatando a “dignidade humana”, a memória e a atenção para as “imagens verdadeiras”. Wulf (2003) descreve a nossa era como a segunda etapa do processo de “mundialização”. O primeiro ocorreu com a criação da imprensa e a possibilidade de divulgação da palavra escrita. Hoje, com as novas mídias e a produção de imagens, nossa realidade passa a ser construída através da representação imagética e não de um objeto real. Observa-se, portanto, a necessidade de criação de mecanismos para a leitura desses novos, múltiplos e poderosos códigos visuais que invadem espaços públicos e privados, através da televisão, de jornais e revistas, do cinema e do computador (Ferraz, 2005).

Trevisan (2002) propõe cinco modalidades de metodologias de leitura de imagens, devido às múltiplas facetas existentes nesse processo. O primeiro, leitura bibliográfico-intencional, prevê um estudo da vida do autor e suas idéias estéticas, do ambiente em que viveu, das condições de sua produção e da relação artista-cliente. A leitura cronológico-estilística baseia-se na influência do período histórico sobre os modos de ver e interpretar do artista. A leitura formal, ainda muito popular no Brasil, fixa-se na análise da obra de arte em si, na sua estrutura e organização da composição e dos elementos gráficos. A leitura iconográfica acrescenta à leitura formal, a leitura dos elementos expressivos e simbólicos intrínsecos – questões históricas, sociais, econômicas, políticas, documentais – descrevendo e classificando as imagens. Finalmente, a iconologia ou iconografia interpretativa busca analisar a concepção de mundo refletida no objeto artístico, baseando-se em documentação política, poética, religiosa, filosófica e social, referencial de uma época ou local. Esboça, assim, a atitude do artista de representar ou de pensar sobre uma realidade.

Apresentamos, então, uma estrutura mais didática para o processo de leitura de imagens, utilizado com a turma caso da Especialização de uma IES pública, baseado em caminho proposto por Martins (1998).

1. Análise da forma e conteúdo:

• Elementos da visualidade (ponto, linha, forma, espaço, volume, textura, cor – natureza e efeitos) e a relação entre eles (composição, repetição, ritmo, variação, contrastes, harmonia, tensão).

• Temática (figurativo, não figurativo, abstrato, descritivo, naturalistas, subjetividade, relação com a memória, outros).

2. Análise das linguagens:

• Desenhos, pinturas, esculturas, gravura, objeto, instalação, fotografia, história em quadrinhos, outros.

3. Análise da materialidade:

• Suportes, ferramentas, matérias, procedimentos técnicos.

4. Contextualização

• Saberes estéticos e culturais – História da Arte, Sociologia da Arte, Cultura Popular, outros.

5. Conexões transdisciplinares – com outras áreas do saber

6. Processo de criação.

Os tópicos enumerados são aplicáveis à análise de qualquer tipo de imagem, artística ou não. Porém, deve-se sempre observar que, no caso de materiais de comunicação, o objetivo do material veiculado é elemento primordial a ser estudado, pois dele dependem os métodos para alcançar metas desejáveis:

• Objetivo do material (o que se quer alcançar – qual o resultado esperado)

• Destinatário

• Quais vozes estão expressas – intertextos

• Formas de circulação

• Definição do conteúdo – conceitos representados



Contexto do estudo

Propomos uma reflexão sobre o desenvolvimento da prática leitora em docentes de espanhol como língua estrangeira (E/LE), discutindo não apenas as linhas teóricas a serem seguidas ou as dificuldades a serem vencidas, mas a ampliação da visão de leitura em LE. A partir da realidade da disciplina de Leitura como processo interativo, de um curso de Especialização de uma instituição de ensino superior (IES) pública do estado do Rio de Janeiro, discutimos a relação interdisciplinar entre a proposta pedagógica de leitura de imagens da Arte-Educação e a formação permanente dos formadores de leitores em E/LE.

A turma observada possuía 20 alunos, licenciados em Português-Espanhol, em sua maioria professores, atuando em diferentes níveis do ensino de espanhol (Fundamental, Médio, Pré-vestibular, Superior, Cursos livres). Suas realidades de trabalho revelam diferentes objetivos e, conseqüentemente, práticas docentes. Nelas a leitura nem sempre é prioridade, estando, muitas vezes, subordinada à produção oral e escrita e limitada à decodificação de textos elaborados com fins didáticos – aquisição de novo vocabulário ou estruturas gramaticais, apresentação de aspectos culturais hispânicos.

O curso em questão teve a duração de 45 horas/aula, divididas em dois módulos: o primeiro, de 30 horas, trata do conceito e modelos de leitura, da leitura interativa e como enunciação; o segundo, enfoca especificamente a leitura de imagens e as bases teóricas que fundamentam essa atividade. Como atividades, além das leituras, apresentações expositivas das professoras e dos debates em aula, os alunos, em pequenos grupos, tiveram que apresentar dois seminários ao final de cada módulo. No primeiro caso, escolheram um texto e procederam a uma leitura, enfatizando um dos procedimentos leitores estudados. No segundo, trabalharam uma proposta leitora de textos caracterizados pela presença prioritária da imagem, procurando materiais que ilustrassem suas visões sobre hispanidade.

Fez também parte das atividades desenvolvidas no período, o preenchimento de um questionário objetivo sobre a disciplina: a pertinência e adequação de seu conteúdo e seus objetivos, a relação entre teoria e prática, a relevância do estudo para os alunos. Os dados coletados ressaltaram, unanimemente, a necessidade de estudar a leitura e sua pertinência para a formação docente e a atuação em sala de aula de LE. Também foi assinalada a novidade do tema para a maioria dos professores participantes da turma. A relação entre teoria e prática, no entanto, não apresentou equilíbrio e homogeneidade na opinião dos consultados. Para alguns, a teoria estava mais valorizada que a prática, quando sentiam necessidade de mais indicações sobre a aplicação das bases teóricas às suas respectivas realidades docentes. Outros, embora em menor número, ao contrário, demandaram maior aprofundamento no campo teórico, ampliado a diferentes níveis e realidades de ensino. De qualquer forma, ao final da disciplina, ficou patente no depoimento dos alunos a importância de incluir a sistematização da leitura e seu ensino na formação do professor de E/LE.



Análise dos trabalhos
desenvolvidos pelos professores

Optamos por enfatizar em nossa análise os trabalhos da segunda etapa do curso. Uma das razões está no fato de que os docentes, oriundos de cursos de Letras, não têm qualquer formação relacionada à questão da leitura de imagens. No entanto, cada vez mais se tornam freqüentes os exercícios e avaliações em LE que utilizam textos com presença de elementos gráficos, em alguns casos, quase exclusivamente: histórias em quadrinhos, charges, propagandas e publicidades, reproduções de obras de arte.

Para dar apenas um panorama mais geral do curso no que toca à apreensão de novas concepções sobre o processo leitor, cabe ressaltar que, no primeiro seminário, a maioria dos grupos alcançou os objetivos propostos. Isso significa que escolheram os textos que eram de seu interesse, tendo o cuidado de selecionar aqueles que favoreciam o tópico teórico que deveriam destacar em suas leituras[3] e utilizando os procedimentos estudados. Estas, por sua vez, exploraram o potencial do leitor para a atribuição e construção de sentidos pela interação com o texto.

Um único trabalho merece destaque por fugir às propostas teórico-metodológicas para a leitura. O grupo que apresentou sua leitura com ênfase em inferências lexicais partiu de uma abordagem que mesclou procedimentos do método direto com uma visão tradicional de ensino de vocabulário. Escolheram um texto que tratava de uma nova opção de vestimenta nas empresas japonesas para combater o calor, devido aos cortes orçamentários no que se refere ao uso de aparelhos de ar condicionado. Ao invés de propor uma aproximação ao tema a partir do título e de imagens que compunham a notícia, ou de discutir possíveis dúvidas de vocabulário dentro de seus contextos, partiram para o uso de dramatizações, desenhos e cartazes, a fim de fomentar a associação das palavras desconhecidas que representavam com seu significado. Evitaram também, ao máximo, a presença da língua materna nas atividades de definição de vocabulário desconhecido. Não houve comentários sobre o assunto/conteúdo do texto, seu enunciador, co-enunciadores, finalidade ou gênero. Esse passou a figurar apenas como um pretexto para a aquisição de léxico novo. Todo o protagonismo do trabalho, segundo o exposto, ficaria para o professor, que deteria as falas e controlaria a intervenção dos alunos, limitada a decodificar os significados das palavras destacadas.

O segundo seminário, como apresentado anteriormente, objetivou a aplicação dos conceitos e teorias estudados sobre imagens e sua leitura no trabalho com E/LE. Procuramos abordar variadas formas de veiculação de imagens presentes em nosso mundo – desde as artísticas, às midiáticas e comerciais – e possíveis utilizações na prática pedagógica. Em nossa proposta metodológica buscamos alternar informações teóricas com exercícios práticos de análise de obras artísticas em diferentes linguagens – desenhos, pinturas, esculturas, instalações, fotografias –, mídia televisiva e impressa e história em quadrinhos. Após essa experiência, os grupos apresentaram propostas didáticas com o uso de imagens, na linguagem de sua escolha, que expressassem a essência de elementos da cultura hispânica.

Da mesma forma que ocorreu no primeiro seminário, a maioria dos trabalhos atingiu os objetivos. Os recursos utilizados foram: (a) história em quadrinhos, (b) charge, (c) ilustrações de livros e sites, (d) documentário; (e) reproduções de pinturas da artista plástica Maria Elena, que faz uma releitura da cultura popular mexicana através das cores e representação das piñatas; (f) fotografias da festa, também mexicana, do Dia dos Mortos, em contraponto com o Dia de Finados, no Brasil; (g) vídeo-clip da cantora mexicana Thalía Sodi, onde são ressaltadas cores, elementos naturais, vestimentas, instrumentos, ritmos, dança e elementos simbólicos da cultura hispânica; (h) campanhas publicitárias sobre o turismo na Espanha, veiculadas na Internet e em revistas; (i) o filme Diários de Motocicleta, de Walter Salles Jr.

Fazemos uma análise mais detalhada dos dois últimos trabalhos. Cabe, antes, destacar duas soluções opostas. A apresentação de um grupo, ofereceu propostas educacionais que tinham potencial produtivo, porém a escolha de imagens isoladas do seu contexto original – páginas da Internet – empobreceu o seu uso, tornando-as meramente ilustrativas. Outra equipe, ao contrário, exibiu um pequeno documentário sobre a imigração ilegal na Espanha, não aproveitando seu rico potencial pedagógico.

Os grupos que trabalharam com o filme Diários de Motocicleta e com imagens da campanha institucional turística Espanha Marca desenvolveram cuidadoso estudo dos elementos presentes nas distintas linguagens – formais, estilísticos, simbólicos, contextualização sócio-histórico-cultural. Após a exibição das cenas finais do filme de Walter Salles Jr., a análise deteve-se no aspecto dramático do filme, como forma de reflexão sobre o espaço social da América Latina, através do uso imagens locais originais, de fácil leitura e grande apelo emocional. A proposta pedagógica incluiu o uso de história em quadrinhos sobre Che Guevara, como forma de complementação do conteúdo histórico.

A versão da campanha turística Espanha Marca utilizada pelo grupo havia sido retirada de circulação pelo governo espanhol, por poder sugerir um vínculo com o turismo sexual. A partir dessa informação, foi aberto um debate sobre a cultura e a moral espanhola e o público alvo da referida campanha – estrangeiro, possivelmente americano ou inglês, representado pelo uso de jeans. Ficou explicito, em ambas as propostas, a importância dada à participação dos alunos na descoberta de significados e na construção coletiva do conhecimento.



Considerações finais

A leitura, como já foi ressaltado, é um processo complexo que envolve não apenas a palavra, mas a imagem e os aspectos mais diversos do mundo. Apesar de fazer parte do cotidiano e merecer menção em documentos institucionais sobre educação, não tem um espaço de destaque na formação do professorado de LE. Isso significa que, para desenvolver o potencial leitor de seus alunos, o docente necessita investir numa reflexão e aperfeiçoamento de seu próprio processo de leitura. Além da demanda de investimento nos currículos universitários, também é desejável, pois, o trabalho num nível de formação continuada que favoreça o contato com teoria, metodologia e práticas leitoras por parte dos professores.

Conscientes de que o desenvolvimento da capacidade leitora de imagens é processo árduo, que exige prática e sólidas bases teóricas, a experiência descrita configura-se como ponto de partida para o profissional em LE. A intimidade com a informação imagética depende de atitude curiosa, crítica e perseverante. Para isso, ao uso da imagem em aula, deve anteceder uma detalhada pesquisa sobre a sua autoria, informações técnicas de produção, para que público e uso se destinam e em qual contexto foi criada, além da leitura dos elementos formais e simbólicos que a constituem.

De qualquer maneira, é imprescindível que o professor formule claramente os objetivos pedagógicos que pretende alcançar com a leitura de forma geral e com o uso de imagens. Que tenha em mente os inúmeros enfoques que as imagens podem propiciar e os caminhos interpretativos que podem ser percorridos durante qualquer leitura.

Um último aspecto que merece destaque, observado através da análise dos trabalhos que não alcançaram plenamente os objetivos durante os seminários dos alunos de Especialização, é o fato de que imagem e texto verbal não devem ser dissociados. A retirada das imagens de seu contexto e sua leitura isolada gera uma limitação no processo leitor, que passa a ser fragmentado e desconecta elementos que, juntos, compunham a mensagem original e contribuem para a construção de sentidos.



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[1] Referimo-nos, com especial atenção, ao caso dos cursos de Português-Espanhol, que têm sido alvo de nossas pesquisas

[2] A pesquisa “Leitura e ensino de espanhol como língua estrangeira: uma abordagem integrada quantitativo-qualitativa”, atualmente em curso na UERJ, coordenada pela professora Cristina Vergnano Junger, tem recolhido e analisado programas de universidades do estado do Rio de Janeiro, confirmando essa constatação do reduzido investimento em abordagens teórico-metodológicas que contribuam para a formação de formadores de leitor nos cursos de espanhol da graduação.

[3] Os trabalhos deveriam oferecer a leitura do grupo sobre um texto escolhido, enfatizando um dos temas a seguir: inferência lexical, gêneros de discurso, polifonia e intertextualidade, conhecimento de mundo e elementos inter-culturais, elementos lingüísticos (coesão e marcadores discursivos).

Cristina Vergnano Junger (UERJ)
Solange de Souza Vergnano (CEFET e FIOCRUZ)