Como se dá a apropriação da literatura nos espaços escolares? Como estão sendo traçadas as relações entre os indivíduos e os novos suportes de leitura e escrita? E como anda a interface entre a imagem e o texto escrito no corpo da leitura? Estes são apenas alguns dos tópicos que foram discutidos durante o Colóquio Roger Chartier – apropriações de um pensamento no Brasil, que aconteceu de 12 a 15 de setembro no Rio de Janeiro. Em sua nova visita ao Brasil, o historiador e escritor Roger Chartier fez duas palestras: uma na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ e outra na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
Diretor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais), em Paris, na França, e professor especializado em História das Práticas Culturais e História da Leitura, Roger Chartier é um dos mais conhecidos historiadores da atualidade, com obras publicadas em vários países do mundo. No Brasil, um dos livros mais famosos é A aventura do livro, lançado pela Editora Unesp, no qual o autor enfoca de maneira instigante a reorganização do mundo da escrita após a internet.
Em sua última visita ao Brasil, em 2001, Chartier esteve na Multirio e concedeu uma entrevista exclusiva ao programa Educação e Trabalho, apresentado pela jornalista Eliane Bardanachvili, editora do portal da Multirio. No programa, o historiador fala sobre a leitura no século XX1, a história do livro e a sua relação com as novas tecnologias.
Segundo ele, se a tecnologia for amplamente utilizada dentro do mundo escolar, será possível criar uma nova geração de leitores e difundir ainda mais a leitura. “Não há uma imposição da cultura eletrônica sobre a cultura escrita”, diz. Acompanhe a entrevista:
Eliane Bardanachvili – O livro no Brasil ainda está longe de muitos brasileiros. No entanto, já estamos passando de leitores para navegadores da internet. Como o senhor analisa essa situação?
Roger Chartier – O mais importante é não pensar que essa nova técnica de transmissão dos textos, a eletrônica, seja igual para todos os países. Há um mundo de alfabetizados e um de analfabetos, que ainda não conseguem usar esta tecnologia. A diferença deve estar sempre presente, seja ela social, econômica ou cultural, dentro da população de um país específico ou em uma escala mundial. Um dado interessante é que 48% dos endereços eletrônicos estão localizados em países de língua inglesa, só 4% em países de língua espanhola e 3% apenas em países de língua portuguesa. Isto significa que a desigualdade não existe só no Brasil, mas no mundo todo.
Eliane Bardanachvili – As novas tecnologias acirram essas desigualdades. Ficaria, então, mais difícil criarmos novos leitores?
Roger Chartier – As novas tecnologias poderiam ajudar a criar uma nova geração de leitores e a difundir a leitura, se pensarmos em sua utilização dentro do mundo escolar. Poderiam ajudar no aprendizado, na leitura e na escrita. Assim, não há uma imposição da cultura eletrônica sobre a cultura da escrita. Pela primeira vez ocorre, na tela, a difusão de textos. A alfabetização nesta tecnologia é um diagnóstico otimista para o progresso da cultura escrita, dos hábitos de leitura.
Eliane Bardanachvili – É fácil uma pessoa que não seja um intelectual reconhecer a importância da escrita e da leitura?
Roger Chartier – É uma responsabilidade que vejo não somente como sendo da escola, senão também como de outras instituições contemporâneas como a mídia – televisão e jornal -, os eventos culturais e as feiras de livros. Estas instituições são incumbidas de cultivar a importância da leitura para que o cidadão possa conhecer sua sociedade e ter ferramentas críticas para compreender sua situação, os mecanismos que governam sua condição e a relação com outras pessoas e com os poderes. A partir da leitura, o cidadão moderno pode ter uma relação crítica e mais neutra com os mecanismos da sociedade que regem seu dia-a-dia e, assim, ser menos dominado por eles.
Eliane Bardanachvili – A escola deve ter, além do papel de alfabetizar, ensinar a criança a pensar?
Roger Chartier – Existem diversas definições de analfabeto. A clássica, existente no Brasil e em outros países, é aquela em que o indivíduo não sabe ler nem escrever. A escola tem o papel essencial de passar este conhecimento, aprofundando a questão. Acho que saber ler e escrever não seja suficiente para “ler” e “escrever”. Faz-se necessário a familiaridade com a escrita, no sentido que o indivíduo tenha uma cultura que o faça pensar por si mesmo, na relação com os outros e nas relações com os poderes econômicos, sociais e políticos. Esta seria uma forma de entender a cultura escrita e de lutar contra o que chamamos de analfabetismo funcional. De novo, a escola pode e deve desempenhar um papel fundamental, ainda que não de forma isolada, mas em conjunto com as outras instituições. A idéia é de que hoje exista e tenha se desenvolvido um analfabetismo relacionado ao mundo eletrônico. O mundo eletrônico é imposto a cada indivíduo e ainda existem dificuldades de acesso à compreensão e ao uso desta tecnologia por razões econômicas e culturais óbvias. As escolas e bibliotecas podem ajudar aqueles que já sabem ler e escrever e têm hábitos de leitura dentro do mundo clássico a se familiarizar com esta nova cultura.
Eliane Bardanachvili – A mídia eletrônica não seria apenas um apoio, mas um meio pelo qual a alfabetização também se efetivaria?
Roger Chartier – Esta seria a razão pela qual a presença de computadores nas escolas poderia ajudar na alfabetização. As experiências demonstram que o aprendizado das normas ortográficas podem encontrar no meio eletrônico um suporte didático eficaz, sempre com a presença do professor. Usar a informática na escola também é apresentar às crianças uma realidade que tende a desenvolver-se no futuro.
Eliane Bardanachvili – Professor, conhecer a história da leitura, a história do livro nos ajuda a entender esse momento tão conturbado que estamos vivendo?
Roger Chartier – Acho que o saber histórico pode ajudar na compreensão do presente, através das experiências do passado. Talvez possa até ajudar a organizar o desenvolvimento de programas de leitura ou mostrar a descontinuidade da história. No Brasil, existe o programa nacional de incentivo à leitura que ilustra esta questão. Por um lado é um programa que dedica-se a desenvolver os hábitos de leitura e levá-los onde eles não existem. Ao mesmo tempo, é um programa que a partir do conhecimento histórico de especialistas em educação, historiadores e sociólogos, permite reconhecer as etapas, as descontinuidades e as conquistas da leitura. Com isso, estabelecemos um vínculo imediato do passado com o presente para conseguir os objetivos já expostos: a iniciação dos indivíduos nos diversos níveis da cultura escrita, no saber ler e escrever, na prática da leitura e da escrita e no contato com o universo do texto eletrônico.
Eliane Bardanachvili - Olhando para esta história, que pontos o senhor ressaltaria como determinantes na relação que temos hoje com o livro e com a leitura?
Roger Chartier – Devemos ter em mente que Gutenberg criou a imprensa e não o livro da forma como o conhecemos. O livro nasceu nos primeiros séculos da era cristã e se diferenciava dos livros em rolo dos romanos e dos gregos. Com o tempo ele adquiriu a forma como nós conhecemos: com as folhas dobradas, as páginas e a encadernação. O livro chamado pelos historiadores de códice existiu antes e depois de Gutenberg. Nossa relação com o texto está ligada não só à técnica de Gutemberg, mas, principalmente, ao formato de livro que permite ler e escrever, folhear e criar índices. Isto não era possível com o livro da antiguidade. O rolo não pode ser folheado porque não tem folhas, não pode ser paginado porque não tem páginas e nem índices. Todo nosso relacionamento corporal com a cultura escrita está vinculado à forma de livros como conhecemos. Por esta razão, o texto eletrônico lança um grande desafio ao requerer uma mudança de hábitos. Temos que ler em frente a uma tela de computador, existe o teclado e o texto é lido como se fosse um rolo. Mas ao mesmo tempo utilizam-se todos os códigos de um livro: a paginação, o índice…
Eliane Bardanachvili – Estamos retrocedendo de alguma forma?
Roger Chartier – Voltamos ao passado mas, ao mesmo tempo, acumulamos o que foi adquirido com o código manuscrito e o código do livro impresso. Assim, podemos observar que a reflexão do presente pode ser esclarecida a partir do conhecimento histórico. Muitas vezes, compara-se a revolução eletrônica à revolução de Gutenberg. O que não acho adequado. É verdade que existe a mutação técnica, imprensa-texto digital, mas, o mais importante é a transformação da estrutura do suporte e da relação do corpo, da mente, do leitor com o texto. Mais adequado é comparar a invenção do código escrito à invenção da técnica digital.
Eliane Bardanachvili – Que tipo de relação estabelecemos com o texto que não está mais no papel?
Roger Chartier – Um livro é para nós um objeto material com características diferentes a um jornal, a uma revista ou a um arquivo. É uma obra com uma identidade, uma coerência e um autor. É a cultura do código, a vinculação objeto-obra, que desaparece com o texto no computador. O computador é um suporte que oferece ao leitor todos os tipos de texto. A identificação da obra como obra é mais difícil. O desafio se dá na leitura descontínua, fragmentada e segmentada, que não deixa perceber a unidade textual, ou seja, a obra como obra estética. Uma obra intelectual à qual pertence aquele fragmento. A visão que se tem da tela é ambígua. Por um lado é uma tela nova, que transmite textos; por outro, uma tela que já conhecemos, como a da TV. A descontinuidade da leitura frente ao computador traz de volta a prática do zapping. O desafio é como conseguir ver o livro digital como obra coerente, com unidade e identidade.
Eliane Bardanachvili – Pelo jeito, o livro de papel ainda mantém os seus encantos e, mesmo competindo com a internet, não deve morrer…
Roger Chartier – Acho que não. A leitura do texto digital é descontínua e adequada a certos tipos de obras, como dicionários e enciclopédias, onde o leitor procura determinadas palavras ou artigos, e que não precisam ser lidos da primeira a última página. Enquanto obras ou livros requerem a compreensão total, exigem a familiaridade com romances, ensaios, livros de história e de conhecimentos. Acredito que para nós e, possivelmente, para as futuras gerações sempre estarão presentes as três formas de escrita: a manuscrita, ainda usamos o texto escrito à mão, a cultura impressa e, para os que tiverem acesso, o texto eletrônico.
Eliane Bardanachvili – Nós falamos até aqui das novas tecnologias interferindo na rotina de quem lê. E na rotina de quem produz o texto escrito, quais são os tipos de interferência?
Roger Chartier - Para os autores de ficção e de novela existem as possibilidades de usar a relação mais próxima entre a escrita, o autor e o leitor e a de propor ao leitor a intervenção no texto, como se fosse um jogo, entre a criação e a leitura. Para o historiador há a possibilidade de organizar o texto de forma diferente. No texto de história sempre há notas, citações e referências, mas o leitor não pode controlá-las. O vínculo intertextual permite que o leitor vá até essas fontes quando elas tenham sido digitalizadas. A leitura pode seguir a mesma ordem do autor. A referência pode ser mais do que uma nota no rodapé. O leitor pode escolher o que quer ler e tentar refazer o caminho do historiador.
Eliane Bardanachvili – A gente tem cobrado muito do leitor, da adaptação que ele deve ter em relação às novas tecnologias, mas ao que me parece o autor ainda está com uma visão bem tradicional. Ele só está preparado para escrever livros no papel…
Roger Chartier – Até agora a maioria dos autores utiliza a técnica digital apenas para a transmissão de textos criados no conceito tradicional. Se incorporada ao processo de criação, estes os recursos digitais podem modificar a ficção, o romance e os textos de conhecimento que vão adquirir características impossíveis no universo do papel.
com.br/releases/leitura.htm
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