Foi sensível ao longo de todo o século XX uma preocupação crescente com aquilo que se designou chamar "cultura do livro" ancorada numa mais abrangente cultura da leitura, caracterizadora da cultura ocidental. Interrogar-se o que sejam os elementos dessa cultura face ao crescente relativismo cultural, marca indelével de um processo de desconstrução do sujeito fundado sob a égide de Shopenhauer e Nietzsche, é interrogar como pode a leitura, vista enquanto processo cognitivo, testemunhar de um dado fundador da nossa contemporaneidade: o homo liber, tal qual a designação de Chartier, está hoje mais próximo de uma espécie de lobotomia dos seus processos culturais do que da exploração desses processos com vista à motivação dos afectos e activação das suas faculdades mentais, tal como seria desejável. Nesse enquadramento, após o que a galáxia de Gutenberg promove de abertura às mundividências, é possível considerar que a leitura, para lá do que é processo cognitivo se inscreve num conjunto de práticas ritualizadas que exprimem não tanto um saber cultural, mas um gesto simbólico que, do lado das camadas sociais mais desfavorecidas persegue uma ideia de cultura vista como poder "inteligente", ao passo que das camadas sociais instruídas, mormente das elites intelectuais, a ideia de leitura beneficia de um saber que domina aquelas; saber esse preocupado agora não tanto em expandir a leitura na sua dimensão humanista, antes sublinhando na leitura o que ela tem de saber utilitário, prático, não sendo por isso de estranhar que Steiner afirme que o tempo da incultura chegou, até pela relativa generalização de que "ler" é para todos.
Assim, à pergunta o que é a leitura dever-se-á ter em conta que leitura é, à luz do que seria próprio dizer dos discursos, tudo. Sendo tudo, a leitura pode correr o risco de absolutizar a sua subjectividade, alçando aos paroxismos do relativismo práticas também de escrita que se fundam numa ideia de que para escrever não necessário ler. São assim os dias que correm... Ora, do ponto de vista do ensino e do dado cultural "leitura", tem-se insistido no aspecto pluriforme da leitura, apostando-se no facto de a leitura ser de per si um fenómeno que não é estático, não linear, "que não funciona segundo o modo da evolução linear, mas que tem os seus movimentos lentos e suas mutações mais bruscas". Essa pluriformidade convoca desde já várias reflexões que suscitam, como vem sendo prática comum, que a morte do livro está próxima – o que não seria de estranhar dada a crise do sujeito contemporâneo como refere McLuhan – que sublinham a crise do livro e, consequentemente da leitura. Como nos diz José Afonso Furtado "essa crise afectaria hoje uma grande variedade de competências, de atitudes e de representações face à leitura", traduzindo em práticas "cada vez menos consolidadas e hábitos de familiaridade com o estrito cada vez mais escassos".Acresce o facto de que a essa crise se vêm juntar dados estatísticos que, paradoxalmente, traçam um quadro negro, particularmente no caso português, no que diz respeito à leitura, quando precisamente se fixou uma escolaridade mínima obrigatória, resultando gravosas as dificuldades que muita da população (não só) escolar tem em estabelecer relações lógicas e proposicionais, em fundamentar criticamente juízos e valores, em dominar competências de leitura e escrita e de cálculo, fomentando a designação de analfabetismo funcional para lá dos limites da sua definição; crendo-se até que o utilitário e o pragmático são, em rigor, as chaves do sucesso na vida prática. Do ponto de vista da sociologia da leitura interessaria compreender os modos de apropriação do escrito e do lido, adentro de uma perspectiva mais geral que convoca as ciências da educação para um combate que visa, antes do mais, como afirma Martine Poulain, "responder às interrogações sociais e políticas". Esse relacionamento com a sociologia da leitura levanta questões que se prendem com o próprio objecto da leitura – o livro – e com questões de método (que aqui não serão exploradas), bem como promove questões relacionadas com a capacidade de chamar ao campo vasto da leitura outros contributos disciplinares, entre os quais se realçam os contributos dados pela Teoria da Literatura, a Estética da Recepção, a Hermenêutica, a Teoria da Comunicação e as Ciências da Educação, adentro delas a Pedagogia da leitura.
Leitura ou leituras, eis uma das pertinências críticas que trazem a lume esses estudos correlatos, querendo saber-se em que medida pode a leitura facultar a facilidade em diversas competências, transversalmente propondo à resolução das mais variadas situações problemáticas, estratégias metacognitivas que, em rigor, fazem situar a leitura no campo da psicolinguística ou da Psicologia Educacional, sem dúvida necessárias para uma melhor compreensão da diversidade que constitui a leitura lato sensu. Mas a leitura, entendida historicamente pressupõe que se comprrenda o livro enquanto medium do processo social e cultural e como instrumento, seguindo Escarpit, da sociologia do livro, da psicosociologia da leitura e da teoria da leitura, modalidades interessadas em descobrir "a partilha social do livro", olhando-se para o objecto como complexo passível de várias abordagens nas quais leitura não parece ser senão conceito que liberta os investigadores das mais variadas áreas das Ciências Sociais da circunscrita tarefa de ver o fenómeno leitura/livro/literatura à luz de um predeterminismo de escola ou de pensamento. Tudo é leitura, e a única leitura correcta é a que relê, como afirma Abel Barros Baptista e como não deixa de ser focado por Borges e sua ideia de biblioteca. Desse ponto de vista a leitura é situação e gestualidade, é rotura com a estabilidade e afirma-se enquanto dinâmica de rituais que aobrigam e imputam ao processo cognitivo uma dada forma de estar, de ler e de ver o mundo, como se esse mundo fosse "mundo aberto em forma de livro", como se esse mundo visto fenomenologicamente fosse, como afirma Barbier "infinidade de leituras", consoante a natureza dos volumes, dos textos lidos, das pessoas que os lêem, dos momentos e situações, das necessidades... inerentes a esse próprio mundo. Desse modo o mundo-livro é um mundo pronto a escrever-se, a ser escrito no acto de leitura, considerando-se que toda a leitura é prática não-individual, por muito que se insista que estamos sós quando lemos e quando reescrevemos o mundo. Daí que a pluralidade do termo leitura seja a expressão da sua ambiguidade conceptual, porquanto sejam difusas as suas práticas, e porquanto leitura seja técnica que descodifica determinado código de signos, quer na medida em que os desvela, quer na medida em que "ler" seja criar novos sentidos para os signos lidos. Leitura, seguindo-se essa inversão, seria mais do que a descoberta desse código, seria mais um acto de criativa voluntariedade, pressupondo-se uma aprendizagem a dois tempos cognitiva e social. Ler é, para Barthes, "uma forma de gestualidade", estabelecendo-se que o valor de criar seria coextensivo à criação pela escrita, citando: "a ideia de que a escrita seria ainda manual e leitura mental, abstracta", resultando claro que escrever seria ler, ou melhor, ler manualmente, enformando-se na escrita o mesmo princípio activo e cognitivo que colocaria também o corpo numa contígua posição de reflexão sobre o papel. As relações entre Leitura e Escrita derivam, desta feita, das determinantes da leitura, pressupondo-se que leitura é: forma de sabedoria, comunicação, acto de pensamento, acto de conhecimento, interpretação enquanto descoberta dos sentidos duplos do texto, tornando-se, como diz José Afonso Furtado, "via", isto é, "iniciação", estendendo a leitura a um plano de religiosidade em que leitor e livro estão em comunhão com o auctor, o detentor da autoridade da palavras do texto, Deus, em última instância. Ler seria ainda, é ainda, para lá da sua dimensão ascética, operação cohnitiva em que entre livro e leitor se produz um caminho perceptivo dependente da fisiologia do olhar, em que sacadas e fixações condicionam leitor, em que conhecimento prévio do mundo (linguístico, textual e do mundo) conduzem o leitor a uma dada compreensão do livro lido; seria ainda actividade crítica, desenvolvimento de uma inteligència dialéctica em que ao se interrogar o texto se responde com o interrogar dessoutro texto: o leitor. Ler é restituição de sentidos, actuando-se seja do ponto de partida da intentio opera, da intentio auctor ou da intentio lectoris; ler como conflagração de trocas de leituras, como prazer do texto, valendo-se todo o acto de ler desse acto outro que escreve e que coloca no domínio também do escrito a actividade ineterpretativa do mundo. Falar-se-ia de objectivos da leitura, sendo possível defender a ideia de que esses objectivos correspondem a tipos de leitores, chamando-se à colação o leitor-modelo de Eco como paradigma do leitor proficiente? Dessa proficiência, em que os modelos de leitura ascendente e descendente se misturam, seria possível falar-se em leitura-modelo? O caso é fascinante e incómodo porquanto não exista leitor-modelos, como declara Eco em Lector in Fabula, como da leitura apenas se poderá dizer que dado o seu plural semântico é impossível condensar leituras em leitura.
Assim, a leitura propõe-se (como se dominando o leitor?), cinco (mas não haverá mais?) objectivos de leitura: de prazer, de informação, de aperfeiçoamento, de aquisição de valores e de perspectiva crítica. A esta tipologia da leitura, juntam-se com Compagnon e Barthes, a leitura pela desleitura, aquela que derivaria do simples facto de que no prazer de ler se pode achar um maior prazer em não ler. De facto, adentro desta tipologia, leitura seria acto, actividade, discurso, excurso, percurso, incurso, curso, recurso, recursividade, conforme ao que poderíamos achar na leitura graus de leitura e de interpretação: leitura literal, operatória, enquanto "se para nos sinais do texto escrito", ler como decifração do texto, dos signos enquanto veiculadores de sentidos vários. Um outro nível seria o da compreensão do sentido desses signos, opondo-se interioridade a exterioridade da leitura, separando-se necessidade de vontade, porque o primeiro nível é trivial (lê-se porque é necessário), porque o segundo nível é acto de prazer, vício não punível... Existe claramente um conteúdo ideológico nestes graus de leitura, nessa tipologia, ideologia essa que convoca uma hierarquia essa que convoca uma axiologia da leitura e, assim o cremos, também da escrita.
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