A economia da Cultura Periférica
A reportagem “Política Cultural das Ruas” tinha como ponto de partida uma curiosidade sobre a explosão de artistas e artística. Produtores de políticas públicas, esses coletivos passam longe da avaliação dos curadores e dos coordenadores estabelecidos em instituições educacionais e culturais, públicas e privadas. Em compensação o mercado, essa instituição invisível, mas ativa, já sabe que existe um novo mercado consumidor no Brasil: as classes C e D. Tanto sabe que existem agências voltadas exclusivamente à pesquisa dos gostos e atitudes desses segmentos sociais. A possibilidade de consumo faz com que além dos carnês dos grandes magazines populares, essa faixa da população também impulsione essa nova onda de criadores.
Desde 2001 trabalhando no mercado publicitário com os olhos grudados na movimentação econômica por que as classes C e D estão passando nesses últimos anos, André Torretta, faz pesquisa de mercado para grandes empresas nas periferias dos grandes centros contratando jovens da própria comunidade. Proprietário da empresa de pesquisa A Ponte, que tem como foco de atuação nas classes C e D, ele vê um consumo crescente com características bem distintas. "No Brasil, 80% da população é da faixa C, D e E, mas essas faixas estão consumindo cada vez mais. No mercado da telefonia, eles são 70% dos consumidores dos celulares pré pagos." As classes C, D e E podem ter um ganho mensal de 900 reais, 400 reais e 200 reais, respectivamente. "Os Bancos, as grandes lojas de móveis e a indústria de eletrodomésticos querem agradar esse público". Mas "esse público" também se diverte e considera o consumo do bem cultural uma real possibilidade de prazer. É um consumo diferente das outras classes sociais. Não pense em passeios a Museus, imagine uma grande festa na praça da Vila Natal, em Parelheiros, na Zona Sul da cidade de São Paulo. "Vão mais de cinco mil pessoas. Elas consomem bebidas, comidas, Cds... É uma festa com muito forró", diz Torretta. Mas se o cinema nacional vive um boom sobre o assunto, porque as classes C, D e E não vão as salas de cinema? "Um dos problemas mais apontados para o consumo do bem cultural é a proximidade geográfica. As pessoas consomem o que estão próximos delas."
Para o economista Luis Nassif essa ascensão das classes C e D ao mercado de consumo é irreversível. E ele deixa claro que os hábitos desses consumidores são bem diferentes dos hábitos dos consumidores de classe média e da classe A. Em sua entrevista ele afirma que são consumidores muito mais antenados com os novos paradigmas de consumo responsável. O economista Luis Nassif, além de músico e cronista, é reconhecido como um dos mais importantes jornalistas da atualidade. Introdutor do jornalismo de serviços e do jornalismo eletrônico no país, há vinte anos Luís Nassif tem buscado democratizar a mídia e seu espaço, através da criação da Dinheiro Vivo , primeira agência de informações on-line do país. Atua como comentarista da TV Cultura e tem seu blog, e também uma rede de comunicação social, que caracteriza um espaço independente dos meios de comunicação.
Portal RAIZ.: Como o sr. avalia essa nova fase da classe C e D como consumidores de entretenimento, no Brasil?
Luis Nassif: Vamos pegar do ponto de vista histórico e observar que estamos passando por uma fase muito semelhante a outros momentos da vida social no Brasil. Quando você observa a questão financeirização da economia, da globalização financeira, nós tivemos isso no século 19 um desenvolvimento muito forte, onde o Brasil também ficou dependente do mercado financeiro, da internacionalização, de dependência do capital financeiro até meados dos anos 30. Nos anos 20 começa a virada. Essa virada se deve de um lado ao esgotamento do modelo financeiro internacional. De outro lado essa internacionalização afeta os costumes e hábitos da elite brasileira.
Por exemplo, os fazendeiros de café falavam francês dentro de casa. Muitos intelectuais da década de 20 desqualificavam o país afirmando que não tínhamos cultura, nem raça, mas nesse mesmo momento estávamos na fase da formação da cultura popular brasileira. Inicia aí uma reação. Uma manifestação é a Semana de 22, onde se transforma a cultura popular em cultura erudita com base na cultura popular, e outro acontecimento, que é muito similar ao que ocorre hoje, é a entrada das novas tecnologias. Você tem o fonógrafo, o rádio, o disco. Isso permite que a cultura popular carioca venha a tona. Nesse momento percebe-se que o Brasil é uma nação que pode aspirar uma identidade própria e isso ajuda a apagar aquele internacionalismo provinciano que caracterizava a elite fazendeira e cria as bases para o grande movimento de industrialização que acontece nas décadas dos anos 30 e 40. Tanto que o presidente Getúlio Vargas utiliza a Cultura como ferramenta para levantar o amor próprio do brasileiro. Gustavo Capanema é então o ministro da Educação, Heitor Villa Lobos com os corais e a educação orfeônica nas escolas públicas, e a cultura popular brasileira marginalizada nos anos 20, explode nos anos 30. Na década de 40, a elite carioca que era a mais internacionalizada passa a ter orgulho de dizer que tem uma literatura brasileira, temos uma música brasileira, uma arquitetura brasileira. Esse movimento cultural foi importante, mas naquele momento a intelectualidade acadêmica não via, não enxergava essas mudanças, alguns viram como Villa Lobos e Mário de Andrade. Hoje ocorre algo muito semelhante.
O avanço da cultura digital permite revirarmos o país, essa riqueza cultural que ficou escondida. No caso da música, por exemplo, antes só vinha para a mídia o que passava pelas gravadoras, que tinham seus filtros. Você tinha uma produção enorme, mas sem possibilidade de distribuição. Com a internet todas essas barreiras estão caindo. Hoje você grava com um estúdio em casa no valor de dois mil reais. Se você quiser com 20 mil reais monta um estúdio de vídeo. O que está acontecendo no Brasil é que estamos redescobrindo a cultura regional.
O que vai acontecer é o fim da internacionalização, e digo que é inevitável, e de auto afirmação do Brasil. O orgulho de ser brasileiro está muito presente e que se tem de mais original atualmente no Brasil? É essa cultura da periferia e a cultura do interior. Essa história de que o Brasil não presta como apregoa o Arnaldo Jabor, já deu ibope. Ele é um cara inteligente e vai ter que retornar ao Jabor dos anos 70.
A digitalização está barateando o custo e ampliando a divulgação. Hoje podemos ouvir o cara que compõe no Pará e que compõe no Rio Grande do sul, tudo pode ser ouvido no MySpace.
Portal RAIZ.: E o Sr. acredita que toda a sociedade brasileira participa dessas mudanças estéticas?
Luis Nassif: Quando se fala de elite cultural brasileira comparada com essa nova classe consumidora é claro que há diferenças de comportamento. As classes A e B são exclusivistas. Se ela encontra algum bem de consumo ela a quer para ela, não se compartilha. Ela gosta da sala de concertos porque somente alguns poucos, ligados ao seu meio poderão usufruir. Essa visão está presente também na caneta, no carro, na roupa. As classes C e D querem compartilhar. Da compra da geladeira aos bens culturais ela quer integrar, esse é o perfil do consumidor C e D. Eles querem se integrar pois são camadas sociais que sempre estiveram a margem. Não há Estado, não tem Lei e como eles acabam se relacionando e se organizando? Em torno dos vizinhos, da comunidade, da Igreja e das festas populares. Então as festas populares são fatores de agregação e de consumo.
Pego como exemplo a publicidade. Como é a publicidade para a classe média? Ela pode ser do mesmo tipo no Brasil, no Japão, na Europa, por que se têm os mesmos hábitos de consumo. Já nas classes D e E essa publicidade massificadora não cola. O público de uma cidadezinha do sertão de Pernambuco não obedece aos mesmos padrões do público das favelas do Rio. Dou outro exemplo: a música, que é expressão unificadora no Brasil, tem no gênero forró consumidores em todas as classes sociais. No caso do forró ele define um grupo social, dá consistência à uma cultura e, o mais importante, promove o diálogo entre as classes sociais.
Esse diálogo entre os diversos grupos sociais e suas culturas também deveria ocorrer no setor público. Estamos discutindo agora a reformulação da Lei Rouanet. Acredito que esses recursos públicos deveriam ser direcionados para o fortalecimento da cultura regional, ao invés de financiar os livros de arte, festivais internacionais de música ou de teatro que tem público com poder aquisitivo. Claro que existe um problema quando um produto cultural é transformado em ação de marketing, que não agrega valores. Mas nessa nova proposta da Lei Rouanet tem aspectos ainda obscuros, como a criação do Conselho que daria uma valoração aos projetos artísticos. Isso é perigoso.
Acredito na descentralização das políticas culturais e gostaria de entender um pouco mais sobre os Pontos de Cultura. Não é possível falar de política cultural dissociada de outras políticas. É necessário casar o incentivo cultural, a inclusão digital e políticas sociais. Quando você conhece trabalhos artísticos no interior do país percebe que eles são multidisciplinares e tem um grande vigor. São esses artistas dos cafundós do país que são a base de nossa cultura popular, em todos os sentidos, e hoje acredito que é dever do poder público incluí-los digitalmente. Somente dessa forma esses grupos da cultura popular poderão adentrar no mercado e serem consumidos.
Portal RAIZ.: O Sr. acredita que os artistas populares ou periféricos estão invadindo os litorais, os grandes centros, os salões de arte?
Luis Nassif: Eu não sei se está se concretizando esse movimento dos artistas periféricos, populares, rurais invadindo os grandes centros urbanos. Mas acredito que essa é uma tendência irreversível. Por quê? Tivemos uma urbanização no país e uma das características desse processo é a perda das raízes e o referencial internacional e isso impacta a cultura interna.
Posso citar como exemplo essa nova “MPBzice”. A forma de cantar, de compor ainda centrada nos padrões estéticos dos anos 60/70 com essas informações internacionais, virou um pastiche. E o rock brasileiro também tentou esse caminho na década de 80 e foi musicalmente pobre. Com a banda Os Raimundos e suas musicalidade nordestina redescobrimos o a qualidade no nosso rock’n’roll. Em Belo Horizonte temos exemplos de grupos musicais muito interessantes com referências nas toadas caipiras. O Nordeste também tem sucessos típicos e dominantes nos centros regionais e que não entram no mercado Rio de Janeiro/São Paulo.
A mídia, nessas duas cidades ainda está presa aos paradigmas da indústria fonográfica. Essa indústria morreu e a mídia ainda não conseguiu nada colocar no lugar. Temos uma música muito boa sendo feita em Recife, João Pessoa, Belo Horizonte, Belém, Salvador, mas que não aparece na grande mídia, o canal onde essa produção poderia expandir, porque ela anda está presa no paradigma das grandes gravadoras. E qual é esse paradigma? A gravadora prepara um lançamento, prepara um release e distribui paras as redações dos jornais. Então só o que sai das gravadoras é o que vira notícia, mas as gravadoras morreram, não foram enterradas ainda, mas morreram. Os cadernos culturais ainda não fizeram a transição. O que eu conheço de músicos... O Brasil tem uma infinidade de músicos instrumentistas, hoje nós temos uma geração de músicos instrumentistas que é uma das mais ricas que já tivemos na nossa história! Violonistas, baixistas, bandolinistas, saxofonistas, pianistas, uma tradição que vem do choro e que cresceu muito e com muita qualidade.
Sou jornalista de economia e fui o primeiro a escrever sobre a cantora Fabiana Cozza, sobre o Renato Braz. Não entendo o porquê disso, mas foi assim que aconteceu. E mesmo sendo economista posso te adiantar que apresento um ótimo músico por dia!
Ainda bem que as tecnologias digitais e a internet estão aí. Dessa forma o músico pode realizar uma boa gravação, disponibilizar na sua rede virtual, e depois divulgar na rede de amigos. Para mim o melhor trabalho musical dessa década é o CD “Vale dos Tambores” do compositor, pesquisador e bandolinista Carlos Henrique Machado. O caminho percorrido foi disponibilizá-lo no MySpace e hoje é um dos Cds mais vendidos da plataforma. Para mim está muito claro: o músico brasileiro tem muito a ganhar na rede virtual.
Recentemente eu vivi uma experiência muito interessante na rede. Eu estive no Recife e ganhei um choro do Beto do Bandolim, o “Bandolim do Nassif”. Eu publiquei a partitura no meu blog. Dois dias depois, o maestro Vicente Malheiros, do Pará, fez um arranjo para fagote, flauta e piano, e mandou o arranjo e a partitura. Eu também publiquei no blog. Aí o Neves, do site Samba e Choro, fez um arranjo para um regional.
Portal RAIZ.: Mas nesse caso que o Sr. acabou de citar não é exatamente um exemplo de que os artistas “periféricos” não estão mais a espera de serem descobertos, não são mais passivos, e são capazes de trilhar seus caminhos e obter sucesso?
Luis Nassif: É claro! Um internauta do Cariri nos enviou a dica de uma rádio de sua região que toca música brasileira e a música feita no Cariri, no interior do estado do Ceará. O músico Vitor Ramil voltou para Pelotas, no Rio Grande do Sul, e está de lá compondo e mostrando a sua música pela internet. Não há mais essa necessidade de morar e viver nos grandes centros.
Portal RAIZ.: Então não temos mais uma olhar hegemônico. Não temos uma música que toca nas diversas rádios, não temos mais um único ponto de vista, qual a sua avaliação do ponto de vista econômico?
Luis Nassif: Começa agora um novo ciclo que se forma a partir dessa crise financeira internacional, um novo conjunto de valores que vão marcar a nova etapa do capitalismo, trabalho em rede, a colaboração. A etapa anterior que preservara o individualismo exacerbado, financismo exagerado e o controle do sistema pelas grandes corporações, tudo isso está ruindo, acabando. A Microsoft “dançou’! As grandes gravadoras acabaram! Qual caminho que surge? Surge esse caminho das redes sociais, que são globalizadas, essas redes se formam em torno de valores, ou afinidades, e quais são os valores dominantes na juventude hoje? Desenvolvimento sustentável, e nisso Brasil é o país símbolo da sustentabilidade. Esse jeito informal de viver que avança nos escritórios, isso também é uma maneira típica do trabalho dos brasileiros. O brasileiro é descolado por natureza. A questão da afetividade, que os outros países querem recuperar, sempre existiu no Brasil. Talvez seja um grande momento de projeção do país no resto do mundo, porque o resto do mundo quer ser mais afetivo, menos formal, mais coletivo e repensar formas de crescimento sustentáveis e que respeitem o meio ambiente. Se o país conseguir transformar esse nosso jeito em produtos: músicas, festas, vestuário, perfumaria, joalheria, artesanato, podemos ganhar um grande mercado. Nós temos um vasto campo para comercialização através dessas redes porque elas romperam as barreiras, essa crise rompeu o monopólio dos grandes grupos.
Portal RAIZ.: Então estamos assistindo a formação de um novo sistema econômico e de novas relações?
Luis Nassif: É isso mesmo. Uso novamente um exemplo pessoal, tenho livros editados, pergunte quanto eu já recebi de direitos autorais? Nada, nada e mais nada. Com as grandes gravadoras acontece o mesmo, quantos músicos conseguem receber por seus cds?
As redes sociais funcionarão exatamente para suprir essas lacunas, de forma mais colaborativa. Um músico poderá acessar os teatros e rádios de um banco de dados de uma rede social e com isso acionar shows com produção local. Nesse sentido uma grande gravadora é uma instituição anacrônica.
Portal RAIZ.: E o Estado? Onde ele participa?
Luis Nassif: O Estado tem como e pode participar. Por exemplo, no caso da música, a Funarte através de editais patrocina a produção de Cds. Mas porque não patrocinar um Portal da Música Popular Brasileira em inglês e espanhol para que os músicos criem negócios no exterior? Dessa forma o músico do Cariri pode vender Cds para o exterior. Com um site organizado podem vender a música a dois reais, por exemplo, assim você pode montar uma coletânea de música popular brasileira. O governo tem que atuar na inclusão digital desses artistas e na promoção de novos modelos de negócios. O que falta no Brasil são os especialistas que pensam na geração de modelos de negócios.
Portal RAIZ.: E as classes C e D, continuam a consumir mesmo nessa crise financeira?
Luis Nassif: Tem algumas âncoras que seguram o consumo desses grupos. O programa Bolsa Família e o aumento do salário mínimo, que é mais abrangente. Essas classes têm uma maior volatilidade de ganhos, isso impedia o crédito, mas com o Bolsa Família isso criou uma base de segurança e fez com que as pessoas comprassem mais nas Casas Bahia. É claro que o crédito vai diminuir um pouco, mas o impacto nessas classes é menor porque já estavam na informalidade e tem agora esse apoio do Bolsa Família. Creio que não cresceremos tanto como em 2008, mas o consumo popular vai segurar a peteca, será menos afetada, e esse é um dos grandes diferenciais do Brasil, a inclusão desses grupos no mercado de consumo, do consumo de entretenimento, de músicas. Essa crise pode até retardar esse consumo, mas esse processo é irreversível.
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