domingo, 16 de janeiro de 2011

LEITURA DA REALIDADE BRASILEIRA

Nada mais oportuno do que os múltiplos significados da expressão ‘levando a breca’ para representar a situação ou a paisagem brasileira da leitura em tempos históricos passados estendendo-se até ao momento presente. Brasília, capital da República, 13 de outubro de 2010 – 2010, terceiro milênio, parte de um tempo em que as sociedades são proclamadas sociedades da informação e sociedades do conhecimento. De um tempo em que as descobertas científicas e as informações se expandem exponencialmente. De um tempo em que as metamorfoses cognitivas e valorativas são estimuladas e solicitadas a cada dia que passa. De um tempo em que as fronteiras do olhar se tornam elásticas e as nossas retinas necessitam de refinamento constante a fim de compreender os fenômenos do mundo. 2010, terceiro milênio, tempo das sociedades da informação e do conhecimento, em que as complexas tecnologias dispõem e disponibilizam diferentes caminhos para uma maior comunicação entre os homens, mas que, ao mesmo tempo, impõem, obrigam a presença de homens emancipados do analfabetismo, de homens que saibam ler, saibam escrever e que tenham condições objetivas para os manejos da escrita em suas várias configurações.

Dentro da paisagem brasileira da leitura – paisagem que vem levando a breca há séculos –, o analfabetismo se repete através dos governos como uma chaga sempre muito discutida, aqui e ali combatida, mas nunca curada ou vencida. De Paulo Freire ao Mobral e do Mobral aos diversos e retumbantes movimentos nacionais de combate ao analfabetismo, o tumor permanece pulsando na sociedade brasileira, como a mostrar reiteradamente que as políticas educacionais e culturais tiveram, até agora, pouco efeito ou então a comprovar que os analfabetos não podem e nunca vão desparecer porque o poder precisa deles para se manter e dessa forma continuar a reproduzir as estruturas injustas, demagógicas e oligárquicas existentes neste país. Assim, no âmbito da alfabetização, condição sine qua non para ser um leitor da palavra, a leitura leva a breca porque o poder, pelos seus tentáculos e manobras, inverte o jogo: ao invés da emancipação dos indivíduos, ao invés do desenvolvimento social do país, ao invés dos direitos da cidadania, interessa ao poder, isto sim, o atraso, a mediocridade e a ignorância. Do contrário, como se manter no poder e ao mesmo tempo justificar a corrupção, as mentiras e os demais escândalos que vai e vem reincidem por estas terras ao longo dos anos? Uma das vantagens insubstituíveis da escrita e, portanto, da leitura é que elas permitem voltar à mesma para análises mais profundas dos seus conteúdos ou das suas idéias e permitem também guardar a história e a memória dos fatos, dos acontecimentos. Assim, interessa ao poder que determinados fatos sejam velozmente esquecidos e nada melhor para isto do que um povo analfabeto, desmemoriado, manejável e completamente dócil aos processos crescentes de consagração da mentira em nosso meio.

A leitura também é levada à breca por aquilo que conhecemos com o nome de ‘analfabetismo funcional’. Ou seja, a regressão de um leitor à condição de analfabeto por falta de práticas de leitura e usos da palavra escrita. Textos manuscritos, impressos e virtuais ficam do lado de fora da vida e do trabalho de um mundão de brasileiros. A cegueira do analfabetismo lhes foi uma vez apagada pela escola, mas retornou mais forte ainda porque não lhes foi mostrada a utilidade social ou, o que é bem mais provável, porque o meio social não lhes apresentasse os locais e os objetos onde aplicassem as suas competências de alfabetizados-leitores.

Olhemos atentamente para a rede de bibliotecas públicas, escolares e comunitárias do Brasil e veremos a secura e a aridez desse empobrecido terreno. Ao invés de um serviço consequente para a qualificação contínua de leitores, o que vemos é um repetido apagar o sol com a peneira ou programas homeopáticos, sazonais, de pouca duração e eficácia, que, ao nível discurso, se tornam bombásticos ou pretensamente “populares” aos olhos dos governos e, através deles, aos olhos da população. Estão aí, premiados e enaltecidos como soluções aos centenários problemas nacionais da leitura, o caminhão e o barco das letras, que saem somente quando as condições o permitem, o baú de livros, o mediador de bicicleta, os cajados, cestos e sacolas de literatura, as meias dúzias de obras para a leitura em sua casa e outras iniciativas intermitentes que são soluções pobres para pobres e que nos desviam da necessidade fundamental que é fazer da leitura uma prática cultural enraizada, encarnada na vida dos cidadãos. Uma prática vital para a qualificação de suas decisões e ações em sociedade. E para enraizar a leitura no cotidiano das pessoas é necessário, além da escola onde se aprenda a ler, uma rede capilarizada, moderna, integrada e dinâmica de bibliotecas e centros de cultura, com abastecimento permanente de obras e com gente especializada para difundir e promover as práticas de leitura à altura das necessidades da população brasileira.

Na falta ou ausência dessa rede, com serviços infra-estruturais de leitura, os programas nacionais de distribuição gratuita de livros às escolas brasileiras, como vem acontecendo de ano para ano desde 1970 e que levam milhões de reais de verbas públicas, devem ser altamente questionados. De fato, se a merenda escolar necessita do refeitório e da nutricionista para ser devidamente preparada e servida, os livros e os demais suportes da escrita precisam de bibliotecas e de profissionais ligados ao universo da escrita para serem organizados e dinamizados em diferentes interfaces com os professores e os estudantes. Eis novamente a leitura sendo levada a breca ou terminando em pizza em todos os pontos do território nacional. É bem provável que resida exatamente aí, na inexistência dessa rede capilarizada de organismos e serviços do mundo da escrita, a ineficiência, para não dizer inutilidade ou nulidade, das políticas relacionadas às compras astronômicas de livros para distribuição gratuita às escolas brasileiras. E a contradição fica mais escancarada quando sabemos que no Brasil o governo é o principal comprador de livros (com dinheiro público, nosso dinheiro!) para reiterar, anualmente, o seu próprio fracasso na elevação dos índices de leitura e dos indicadores de qualidade do ensino. Portanto, essa política caolha e manca é um prato cheio para a indústria do livro, mas um osso duro de roer para a promoção da leitura e o aprimoramento dos leitores em todas as regiões do território nacional. Enquanto esse esquema esclerosado, impotente e estéril não for devidamente superado, a leitura vai continuar a patinar sem sair do lugar, ou seja, vai continuar levando a breca.

Outro fator que leva a leitura a breca está relacionado com aquilo que eu chamo de ‘exagero conceitual’, colocando minhoca na cabeça dos professores, distorcendo a compreensão objetiva das coisas do universo pedagógico e educacional. Falo aqui dos exageros que circundam o conceito de ‘letramento’. Recebido de braços abertos pela comunidade acadêmica, esse conceito superava os limites teóricos da alfabetização e nos conduzia ao terreno dos usos sociais da escrita e da leitura. Criou-se o binômio alfabetização-letramento e, de repente, o segundo (letramento) como que se desgarrou do primeiro (alfabetização), ganhando uma vida própria, alçando vôo sozinho na imaginação dos professores e dando a parecer que o letrado não precisava ser alfabetizado. Surgiu daí, por exemplo, a expressão ‘analfabeto letrado’ ou, pior ‘letrado-analfabeto’, num jogo tão absurdo de palavras, inclusive gerando uma extensa classificação a ocupar todos os lugares e todas as posições da esfera conceitual de leitura: letramento matemático, letramento literário, letramento artístico, letramento tecnológico, letramento musical, letramento corporal e outros letramentos puxados pela moda e pelas novidades da academia. E, de repente, por ser agora imperativo o processo de letramento, a alfabetização e a leitura passaram a ser conceitos ultrapassados e, portanto, representativos de trabalhos desnecessários ou desprezados no contexto escolar. Dessa aberração resultou um enfraquecimento sensível do ensino e da promoção da leitura nas escolas – trabalhos estes que necessariamente envolvem ou têm como condição a fase de alfabetização com todos os seus rituais para a aprendizagem do código da língua escrita; a alfabetização como uma base a partir da qual se estabelece uma espiral crescente de competências relacionadas aos usos da escrita durante toda a escolarização e situações de vida numa sociedade letrada. Eis portanto, de novo, a leitura levando a breca!

A velocidade da vida contemporânea também reforça e alimenta o levar a breca da leitura. Pelo menos de um tipo de leitura, a reflexiva, meditativa e crítica, tão necessária ao amadurecimento dos posicionamentos e dos valores dos cidadãos. Essa velocidade, essa ideologia da pressa faz com que as pessoas engulam e esqueçam rapidamente informações escritas, sem as levarem ao patamar das experiências significativas de linguagem ou, se quiser, ao patamar do conhecimento ruminado, digerido e refletido. E por serem rapidamente lidas, por não serem alçadas ao nível da experiência e unificadas pela razão-emoção do leitor, as idéias são também velozmente apagadas na memória do leitor. Nestes termos, os sentidos proporcionados pela leitura veloz dos textos são idéias fugazes que não se juntam às demais experiências do leitor e nem se somam ao seu repertório cognitivo, resultando em adensamento para o enfrentamento dos desafios da vida. Some-se a este problema o contínuo encurtamento dos textos, imposto pelas potentes redes sociais de comunicação da Internet: aqui o sintético se transforma em lacônico, à moda do Twitter que prende o interlocutor a 140 caracteres, inclusive contando os sinais de pontuação. Quer dizer, todos os tipos de pensamento e de intenções de comunicação têm de ser reduzidos para caber no tamanho padrão das plataformas. Ou no mínimo, esses pensamentos têm de ser parcelarizados, customizados, cortados pela metade, fatiados, podendo levar a distorções das mais variadas durante a leitura, para não falar do empobrecimento vocabular. Soube recentemente de um concurso de micro-contos para ser veiculado pelo Twitter, ou seja, contos com, no máximo, 140 caracteres, testando o poder de enxugamento dos escritores e conduzindo a leitura de fruição para duas linhas de escrita. Um gozo rapidíssimo, não resta dúvida. Velocidade e laconismo padronizado também levam a leitura à breca. Isto porque pensamento e linguagem estão dinamicamente imbricados; sendo assim, a redução da linguagem pode significar um estreitamento do pensamento. A padronização da linguagem é sinônima de padronização do pensamento. E a redução e a padronização do pensamento revelam nada mais nada menos do que emburrecimento ou, no mínimo, paralisia mental pelas leis da velocidade e do mínimo esforço.

Indo para o brejo, levando a breca, a leitura relembra agora o principal mediador de sua promoção, qual seja o professor. Qualquer livro decente de pedagogia vai mostrar que O elemento mais importante para a formação do leitor é o professor. Na área da alfabetização, as pesquisas mostram que não é método de alfabetização que faz a diferença para o sucesso do ensino – o que realmente faz a diferença para o sucesso da alfabetização é a experiência do professor, demonstrando condutas docentes coerentes, com entusiasmo, empatia, preocupação constante a respeito da aprendizagem do alfabetizandos. Mesma coisa para o que se segue depois da alfabetização: professores que sejam leitores, com vivências literárias, professores que saibam manejar os gêneros de escrita – são estes os professores capazes de desenvolver e assentar o hábito da leitura junto aos seus grupos de alunos.

Porém, a formação básica da grande maioria dos professores brasileiros, principalmente os oriundos daquelas faculdades comerciais de beira de estrada, também faz a leitura levar a breca. Pesquisas por mim conduzidas nestes últimos 10 anos a respeito das leituras dos professores apontam para múltiplas aberrações. A primeira aberração está presente no período de formação durante o curso superior, onde o texto xerocado, quase sempre fragmentado e fora do seu contexto original, constitui a principal fonte de estudos dos licenciandos. A cópia xerox escancaradamente substitui a leitura de livros e as visitas às bibliotecas para efeito de pesquisas ou consultas às fontes bibliográficas. Ao longo de 4 anos de formação universitária, o professor raramente lê um livro na íntegra e sequer forma a sua biblioteca profissional; ele coleciona textos curtos, reproduzidos daqui e dali e não são poucos os professores que nem isto colecionam. A leitura de textos ficcionais não é incentivada e promovida, substituída que é por leituras técnicas ao sabor da casa de xerox mais próxima. Investigações a respeito do que leem os professores de ensino fundamental mostram que a episteme, que deveria ser o objeto e o objetivo do trabalho docente, vem sendo minada por livros de religião e de auto-ajuda, na base do ame Jesus que ele vai resolver todos os seus problemas e sofrimentos no âmbito do magistério. Não é à toa que Augusto Cury, Içami Tiba, Zibia Gasparetto, Paulo Coelho, Gabriel Chalita e Padre Melo, Silas Malafaia, Lair Ribeiro, etc. atualmente lideram as vendas de livros junto ao professorado brasileiro de educação fundamental e média. É o império simplista da água com açúcar, do confie em si mesmo que as coisas são assim e vão continuar a ser assim mesmo, da sabedoria divina e da figura de Jesus, com direito a citações bombásticas em camisetas ou em cartazes nas paredes das escolas. Tudo isto soma ao festival brasileiro de deformidades pedagógicas e, conforme venho mostrando, ao besteirol que contribui para levar a leitura à breca.

Leva também a leitura à breca a voz que atualmente comanda o ensino dentro das escolas. A voz do professor vem continuamente sendo sufocada por uma outra voz, ou seja, a voz dos livros didáticos e das apostilas terceirizadas tipo Objetivo, Pitágoras, Positivo, Equipe, Etapa, Positivo, etc., deitando por terra, esmorecendo a autoridade e liberdade docente. O professor deixa de ser o organizador e articulador do seu plano de trabalho, de sua proposta didática, de condutor do processo, para ser um repassador de conteúdos prontos, de leituras selecionadas em gabinetes e de caminhos minuciosamente descritos pelas editoras ou pelas empresas produtoras de apostilas. Abobalhado, robotizado, o professor se transforma no bom pastor consumidor do sofisticado mercado editorial: ao mesmo tempo em que promove as grifes didáticas, ele nem percebe que a sua identidade docente e a sua autonomia de sujeito – e não objeto – do ensino se desfiguram cada vez mais. Dessa forma, não são as necessidades dos estudantes e os problemas da realidade que fornecem substância para o planejamento do ensino, mas sim, invertidamente, o devido ajuste customização dos estudantes para digerir materiais didáticos impostos de fora para dentro; quer dizer, os estudantes são customizados para se adequarem às sequências estabelecidas por aqueles materiais. Tudo se faz e tudo se promove em nome da elevação dos índices de desempenho escolar conforme os testes aplicados pelo Governo, mesmo que para isto o professor se despersonalize, continue ganhando uma miséria e participe cada vez menos daquilo que se passa bem na frente do seu nariz. Na área da leitura, como os textos já vêm programados para alunos sem rosto, imaginados pela média, e para professores que pouco ou nada decidem, eis que tudo vai ficando padronizado, igualzinho da silva, à moda das lojas dos atuais shoppings centers. Eis aqui a leitura emancipadora, crítica e criativa sendo levada de roldão aos moldes e conformes únicos das empresas educacionais, quer dizer a leitura sendo levada à breca.

A leitura também vai à breca com o neotecnicismo que nos foi trazido pela introdução da Internet no campo educacional. Ainda que a pedagogia tecnicista da década de 1970 tenha sido criticada e denunciada, hoje ela parece retornar ainda mais forte com as plataformas de educação à distância, com o comércio de empacotados, com as propostas instrucionais customizáveis, enfim como a grande panacéia para os problemas das escolas brasileiras. Meta-se o laboratório de informática à moda das lan-houses dentro dos muros da escola e a aprendizagem estará garantida como num passe de mágica! Faltam professores? Então criemos cursos à distância, cursos meia-boca, cursos em que a máquina pretensamente ensina valores e condutas para resolver de vez este assunto. A leitura passa a significar ‘control cê’ ‘control vê’ ou, se quiser, como copiar e colar para fazer frentes às tarefas passadas por um professor geralmente sem rosto, situado num lugar não sei onde e esparramando atividades para a busca desenfreada de informações nos oceanos da Internet. Navegar é preciso, viver a relação pedagógica, dialógica como queria Paulo Freire, não é mais preciso. Nestes termos, os livros se transformam em instrumentos pré-históricos, objetos descartáveis pela virtualização crescente dos costumes e da vida. Aqui o livro leva a breca, a escrita manuscrita e a escrita impressa vão ficando para trás porque não mais motivam os jovens, porque não mais atendem ao espírito dos tempos modernos.

Passando para o lado do ensino da literatura, veremos que o levar à breca da leitura se agiganta ainda mais considerando a hegemonia da racionalidade técnica e dos valores neoliberais no mundo de hoje, aumentando e perenizando a desigualdade, a barbárie, a espoliação e a injustiça social. Os desníveis sociais no Brasil são brutais e as privações tamanhas que promovem projetos salvacionistas como o Bolsa Família. Nestes termos, os bens voltados à integridade espiritual do cidadão, como é o caso da literatura, são relegados a segundo plano na suposta crença de que o cidadão, sufocado pelas injustiças, não precisa dos mesmos. Retomando um texto clássico do Professor Antonio Cândido (O Direito à Literatura), vale lembrar que todos os seres humanos necessitam, ao longo de sua existência, de fantasia, de sonho, de devaneio e fabulação para conseguir a sua integridade espiritual – daí ser a leitura da literatura uma ponte para a formação da personalidade, para o aumento de conhecimentos, para o desenvolvimento de novas visões de mundo e, portanto, para o amadurecimento dos cidadãos. Mesmo a nossa consciência destes lindos valores gerados pela frequentação aos textos literários não impede que também ela seja levada à breca, considerando fatores visivelmente presentes e reproduzidos na sociedade brasileira como a distribuição desigual dos bens, pouca ou nenhuma margem de lazer indispensável à leitura, baixo acesso à cultura escrita pela falta de uma rede de bibliotecas populares e privação da maioria da nossa população à literatura e às artes em geral.

Cheguemos um pouco mais a nossa lente à operação que o leitor dinamiza ao ler um texto de literatura e, ao fazer isto, verificar se não reside aí a tremenda barafunda, a complexa ginástica que estamos ainda fazendo para inserir a literatura no currículo das escolas nacionais; inclusive, vale lembrar, um currículo que foi paulatinamente perdendo a sua natureza humanística para privilegiar as disciplinas das ciências exatas, numa demonstração muito viva de que o pensamento e a reflexão, dimensões que também perfazem o espírito humano, não interessam aos governos, interessados que estão em escolas técnicas para encaixe rápido no emprego. Trazendo para esta exposição o livro A Leitura, do francês Vincent Jouve, sabemos que a interlocução do leitor com textos literários leva-o, pelo enredamento da fantasia, à libertação das amarras do cotidiano, e pela alteridade, à renovação de suas percepções das coisas da vida, ao desenvolvimento de novos olhares sobre os fatos da realidade. Mais especificamente, ao longo de uma leitura literária o eu real (preso a normas e amarras) cede lugar para o eu artístico, permitindo criações e construções inusitadas pelo sujeito.


Mais especificamente ainda, a fantasia em ação pelos efeitos do enredamento na ficção desestabiliza, desterritorializa, leva o sujeito-leitor a sair dos seus limites. Nestor Garcia Canclini já mostrava no seu livro A Socialização da Arte (1984) que a literatura não apenas representa a realidade, mas aponta como essa realidade pode ser de outra maneira. O que estou tentando mostrar é que a leitura da literatura apresenta uma natureza transformadora, inovadora, ousada e revolucionária; sendo assim, esse tipo de leitura pode ser altamente perigoso aos detentores do poder e, portanto, não é de estranhar a dificuldade da literatura em encontrar entrada e assento nos currículos das nossas escolas. Escute, por exemplo, um poema de Hilda Hilst e veja se a palavra lapidada pela fantasia do poeta não é capaz de estimular a consciência crítica dos leitores:
Lobos? São muitos.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua
Aquietá-los.

Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida
Na palavra escrita.

Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.

Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro.
Se nas coisas que digo
Acreditares.

O quadro de condicionantes que levam a leitura à breca no Brasil é vasto e óbvio. Existem outros condicionantes mais, mas, para não cansar a paciência da platéia nesta quarta feira à noite e para não fugir ao momento do debate, prefiro não descrevê-los e resolvo parar a minha exposição por aqui. Mas, antes, tenho de delinear este posicionamento: a nossa paisagem tétrica e vergonhosa da leitura não é obra do acaso e muito menos do divino; muito pelo contrário, essa paisagem resulta de decisões e ações humanas ou então da falta intencional das mesmas. Tanto as conquistas como as desgraças sócio-culturais, tanto os avanças como os retrocessos educacionais, tanto a dinamicidade quanto a letargia da leitura são arquitetadas socialmente ao longo da história, conforme as forças que entram em jogo para decidir os rumos de uma sociedade. No Brasil, a dívida social com as coisas da educação e da cultura é imensa, a vergonha da leitura é uma obra de homens sem vergonha, geralmente oriundos de uma elite privilegiada e economicamente poderosa que nunca quis e ainda não quer um povo instruído, emancipado e leitor. Não vamos recontar aqui os muitos tropeços, os recomeços e os insucessos das políticas de leitura em nosso país: a paisagens inscritas neste presente histórico mostram que as estruturas e os agentes capazes de aproximar dinamicamente a população às coisas da escrita pelas práticas de leitura nunca foram devidamente plantadas no chão brasileiro ou foram levantadas em número reduzido aqui e ali para serem recorrentemente esquecidas, descuidadas e maltratadas, como é o caso de um grande número de bibliotecas, museus, entidades, etc. cerram as suas portas e morrem à míngua por falta de investimentos e manutenção. Portanto, enquanto o regime de privilégios econômicos, sociais e culturais não for superado e vencido, enquanto a injustiça social e a desigualdade não forem combatidas e aniquiladas, enquanto o povo não deixar de ser uma massa de ignorantes, enquanto uma outra ótica e uma outra vontade política não for instalada no Estado brasileiro, a leitura, enquanto uma prática cultural e um instrumento da cidadania, vai continuar levando a breca. É lógico que este estado de levar a breca continuará existindo a bem daqueles que tiram partido disso e desejam que a leitura continue levando a breca agora e em tempos futuros.

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A origem etimológica da palavra 'breca' é obscura. Por ter escolhido a expressão 'levar a breca' para representar a situação da leitura no Brasil, julgo conveniente elucidar e estender alguns dos seus sentidos lexicais aos presentes até para justificar alguns dos meus posicionamentos nesta noite.

Breca enquanto enfurecimento, indignação ou fúria. Participando da luta por um Brasil de leitores desde 1970, sou levado à breca, ou seja, fico indignado, enfurecido e furioso ao ver a esquiva contínua dos governos às reais necessidades de leitura do nosso povo. Não fosse o valor esperança, que deve se fazer presente no coração de todos os educadores, eu já teria jogado a toalha há muito tempo, pois o que constatei e ainda constato é a reprodução do que não dá certo, o contínuo recomeçar ou a proclamação de que "Nunca antes se fez tanto como neste governo"; quer dizer, esquemas esclerosados, apequenados, que não tiram a educação, a cultura e a leitura do seu tradicional lugar de atraso.

Breca enquanto um aborrecimento que gera mal humor. Outro dia, em entrevista para uma jornalista de Curitiba, fui quase levado a me enganar por uma iniciativa dos lixeiros da cidade, que resolveram formar uma biblioteca a partir de livros catados no lixo. A repórter queria que eu concordasse com ela de que era essa a solução para os problemas de leitura dos lixeiros e, por extensão, da população miserável do Brasil. Quando disse a ela que a esta iniciativa, sem dúvida louvável, deveria se seguir a instalação de serviços públicos de biblioteca a todos os lixeiros, ela quase brigou comigo. Levei a breca, ou seja, fiquei aborrecido e mal humorado...

Breca enquanto maldade e malvadeza. Se a leitura da palavra pode levar a uma qualificação de decisões e ações, melhorando a vida dos cidadãos sob diversos aspectos, a existência de uma imenso contingente de não-leitores no Brasil somente pode ser obra de maldade e malvadeza. Cá entre nós, sempre fomos empurrados ao miserê social e cultural, acostumando-nos com o pouco, com o serviço pela metade ou com 'sempre foi assim' e de nada adianta gritar para melhorar. Quer dizer, fui, fomos, estamos sendo objetos da maldade e da malvadeza, lendo cada vez menos e nos acostumando a achar que a realidade em nada será alterada no passar dos anos. Pobres e analfabetos? Ah, essas coisas existirão sempre!

Com a breca... com os diabos... Passemos ao debate, se aqui existirem pessoas levadas da breca!
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Palestra proferida no III Congresso Latino-Americano de Compreensão Leitora, realizado em Brasília, DF, no período de 12 a 15 de outubro de 2010.


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