sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Lautréamont: O ASTRO NEGRO DO HOMEM SEM TÍTULO





UM CLÁSSICO DO NATICÂNONE

por Nelson Ascher, da equipe de articulistas

Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, tem sua obra completa lançada no Brasil
Isidore Ducasse (1846-1870), o autobatizado Conde de Lautréamont, era um garoto (do que mais se pode chamar, nos dias que correm, a alguém que morreu aos 24 anos?) nascido, de uma família francesa, no Uruguai (como dois outros poetas franceses: Laforgue e Supervielle), país onde passou a primeira metade da vida, antes de ser mandado à França para continuar seus estudos. Quase todo o resto de sua biografia é uma lacuna, ou melhor, um grande ponto de interrogação.
Suas obras completas – os seis "Cantos de Maldoror" e as duas seqüências mais breves, chamadas "Poesias" – cabem num volume de tamanho médio. Trata-se de textos em prosa, escritos pouco tempo depois de, primeiro, Aloysius Bertrand e, em seguida, Baudelaire terem consagrado a idéia do "poema em prosa". Os "Cantos" são, de longe, sua criação mais célebre, enquanto as poucas páginas das "Poesias" formam, na medida em que parecem contradizer o espírito de "Maldoror", uma espécie de apêndice incômodo que tem dado lugar às mais desencontradas interpretações: seriam uma manifestação de arrependimento? deveriam ser lidas numa chave paródica? etc.
A tradução brasileira dessa obra, realizada com esmero pelo poeta paulista Claudio Willer, é, na realidade, a terceira edição dos "Cantos" (a primeira foi publicada em 1970), acrescida dos poemas e de um aparato crítico a esta altura não apenas útil, como indispensável. Willer, vale a pena observar, além de tradutor de Antonin Artaud e Allen Ginsberg, é um poeta reconhecidamente influenciado pelo surrealismo e é à luz de tal background que se podem encontrar pelo menos em parte as raízes de sua paixão pela obra em questão. Afinal, foram os surrealistas e, entre eles, o próprio André Breton, que elevaram esses textos difíceis de classificar e seguramente anticanônicos à categoria de clássicos.

É o tradutor mesmo quem, na sua introdução, enfatiza o caráter de exceção dos escritos de Lautréamont, comparando-os a outras tantas obras que tiveram que esperar anos ou mesmo décadas para se tornarem conhecidas e reconhecidas. Pode-se identificar nessa característica o sentido forte da expressão "marginal" quando aplicada à literatura: uma obra marginal seria aquela que, à margem das convenções de sua época, requereria um certo prazo para poder ser compreendida pelos leitores. E particularmente os "Cantos" conformam-se a tal definição, pois são, para os padrões da prosa ou da poesia francesa de meados do século passado [XIX], mesmo após o terremoto baudelairiano, algo, no mínimo, inesperado.

A crueldade sádica que neles se manifesta quase histericamente, bem como a subcorrente de homossexualismo, além de uma iconoclastia peculiar, já foi devidamente esmiuçada por gerações de exegetas e, obviamente, não detém mais a capacidade de chocar a quem quer que seja, salvo, sem dúvida, os ideólogos da correção política (que melhor fariam colocando-os em seu "Index") e, quem sabe, os epígonos tardios do rousseauísmo. Esses elementos decorrem provavelmente da influência onipresente de Byron, ou melhor, de uma certa leitura francesa que poderíamos chamar de "byronismo" (que fez escola até mesmo entre os românticos brasileiros). Embora mais que de exceção, excessivas, tais características já tinham mesmo, à época de Ducasse, conquistado uma parcela de respeitabilidade e não dariam conta da fama póstuma de sua obra.

O que em "Maldoror", por assim dizer, escandalizava ou chocava era menos seu aspecto temático do que o estilístico, pois era neste que o autor punha em cena a maior de suas perversões: a perversão das normas de decoro e bom gosto que vigoravam (e, numa medida surpreendente, ainda vigoram) no uso da língua literária francesa. Um livro pequeno, mas importante, resultado das investigações da estudiosa brasileira Leyla Perrone-Moisés e (postumamente) do uruguaio Emir Rodriguez Monegal, "Lautréamont Austral" propõe algumas das mais interessantes explicações formuladas até hoje, preenchendo algumas das lacunas e respondendo a uma parte das interrogações.

Assim, o Uruguai e a língua espanhola não teriam sido tão irrelevantes à formação do escritor francês quanto se supunha, e seu estilo teria nascido, em boa parte, de uma revolta contra o manual de retórica que havia sido forçado a estudar. Este manual, escrito por um espanhol classicizante, condenava com vigor o barroquismo, e o jovem Ducasse, para fazer oposição àquele, teria tomado o partido deste, usando na sua obra recursos tanto mais estranhos na medida em que pertenciam a uma época anterior, a uma tradição diferente e a uma outra língua. Com isso, ele acabou merecendo um lugar de pioneiro entre aqueles que, consciente ou inconscientemente, passaram, com intensidade cada vez maior, a buscar em contextos distintos e distantes elementos inesperados com a intenção de subverter seu próprio ambiente.

A poesia em prosa de Ducasse/Lautréamont pertence incontestavelmente ao círculo restrito de textos com os quais alguns poucos franceses, geralmente jovens – Nerval, Baudelaire, Rimbaud, Corbière, Laforgue e Mallarmé –, criaram, na segunda metade do século 19, as bases sobre as quais o século seguinte edificaria muito de sua melhor literatura. A centralidade desses textos e sua importância se reafirmam, até mesmo no Brasil, com as novas traduções, edições e/ou reedições que saem a cada década. Só nos anos 90 tivemos os volumes de Rimbaud de Augusto de Campos e Ivo Barroso, um de Corbière, o Laforgue de Luis Carlos de Brito Resende, novas versões de Mallarmé feitas por Julio Castañon Guimarães e uma edição completa de Baudelaire. Com o Lautréamont de Claudio Willer, o círculo não tanto se fecha quanto volta a se abrir para as novas leituras e interpretações que o século que vem [XXI] nos reserva.
Irado, pirado, eis um autor que escreve com a veemência de quem cumpre um Destino. Olho certeiro, Claudio Willer vai nos dizendo, com a precisão de um arqueiro zen, que os Cantos de Maldoror (que também poderíamos chamar de "Contos de Maldoror") compõem – em contraponto com a vida de seu autor, um certo Isidore Ducasse, travestido (literalmente) de Conde de Lautréamont – a sinfonia polifônica de um Caso Literário. Tão rico, curioso e escandaloso como um Caso Policial.

Porque esse pobre (ele talvez, diria, podre, em sua escatologia perversa) Isidore Ducasse tem uma existência entre "humilhados seres humanos", especialmente rápida, quase tosca. Alguém que se encobre em misteriosos 24 anos mortais sob as capas negras de um personagem de Eugene Sue (a quem o velho Marx odiava!) ou de Ponson de Terrail – aquele estranho Rocambole que se esgueira (como Isidore) nas vielas e subterrâneos de Paris.

Sua curta vida transcorre na primeira metade do século dezenove, e dela só podemos ter certeza pela existência de uma certidão de nascimento em Montevidéu, em 1809, de sua morte, em Paris, 24 anos depois, além de seus Cantos – mínimos poemas e cartas. Depois, é como se o destino de Isidore Ducasse fosse tragado pela existência cada vez mais poderosa de sua criatura, o Conde de Lautréamont, o narrador dos Cantos de Maldoror. Como se fora um personagem dos próprios Cantos-Contos, seu corpo desaparece misteriosamente na transferência de seu túmulo, sabe-se lá para onde. A segunda morte de Isidore Ducasse vai abrir espaço para a assunção, nos céus da literatura, do Conde de Lautréamont – que terá a vida eterna assegurada pela paixão de um Antonin Artaud, de André Breton ou de um Octavio Paz que, com a linguagem de um Maldoror, dirá: "O astro negro de Lautréamont preside o destino de nossos maiores poetas".

Imagine-se a enlouquecida emoção de Isidore Ducasse se pudesse pressentir o destino de seus escritos! Logo ele que, como nos esclarece Willer, em seu prefácio magnífico como sua visceral tradução, teve de esperar 16 anos (após sua morte) para ter leitores, se tornar um astro negro navegando no coração da arte do fim do século dezenove – velas pandas de seu barco triunfante atravessando o século vinte...

Como Arthur Rimbaud, Artaud ou Bréton, o Conde é um dos signos da aventura literária – um inventor, na insuperada classificação de Ezra Pound. Mais do que outros personagens criadores da literatura contemporânea, Lautréamont (ou Ducasse? ou Maldoror?) dilui em termos absolutos a sua existência no plano da literatura. Seu livro é um jogo da amarelinha de construções e estruturas literárias. Um brinquedo nas mãos de um rapazinho que cultiva – no universo simbólico – tudo o que lhe parece mais inadequado aos bons costumes, - à ordem, à moral - acenando para o leitor com a idéia de que adora o éter, a beladona, e o sexo "anormal", compondo odes aos pederastas, e desafiando, ardorosamente, Deus e suas criaturas, principalmente o homem.

Maldoror (que Willer diz poder ser uma síntese das palavras mal e horror, do idioma espanhol da infância do autor) assume as formas mais satânicas e as mais lunares metamorfoses imagináveis, fazendo o elogio ao horror e ao crime, o que teria despertado sentimentos e paixões contra a obra – não esqueçamos disso – de Ducasse. Para alguns puros, então, o Conde é a metáfora do destino do homicida e – mais do que isso – do Deicida. O Monstro por excelência. E, além do mais, um Monstro pederasta, "autor de páginas sombrias e cheias de veneno". Essa visão piedosa se contrapõe a uma obra que faz o mundo, enquanto construção literária, estremecer como o mar debaixo de relâmpagos e tempestades.

Essa visão piedosa e falsa tenta transformar o escritor num escravo de seus personagens – principalmente de Maldoror. Ele deveria ser expulso do paraíso dos escritores e confinado às grades dos assassinos. Como se devêssemos cravar no peito de Bram Stocker a clava que eliminaria o Drácula que ele construiu. No entanto, as cenas dos Cantos de Maldoror são peças que prenunciam as narrativas mais expressivas do cinema. A polifonia da obra evoca o Moby Dick que ele nunca conheceu – ou as bruxas e neblinas de William Shakespeare e Edgar Allan Poe, que ele seguramente devorou. Tudo isso num tom que vai do patético ao mais refinado humor, quando faz uma devoração contemporânea e sardônica da subliteratura de um Eugene Sue, no cenário das emergentes metrópoles do começo do século dezoito!

Ao leitor dessa obra completa de Lautréamont, traduzida apaixonadamente por Claudio Willer e editada pela Iluminuras – ao leitor que olha debaixo dos lençóis da obviedade e da pieguice – não pode escapar a forma segura com que Isidore Ducasse nos brinda com estruturas de texto que fundem monólogos, diálogos, descrições, jogos com os personagens, e tiradas sarcásticas de humor negro. Frases brincam com frases; estruturas, blocos textuais se desafiam, perversidades e situações pretensamente eróticas constroem uma obra que é uma verdadeira sátira aos vampiros e outros seres fiéis ao Sagrado Senhor dos Infernos. Ao mesmo tempo o autor contrapõe verdadeiras "lágrimas de esguicho", à Nelson Rodrigues, a frases perfeitas, que atravessam os céus da literatura como senhoriais cometas do espírito. Frases de um talento capaz de arrancar ós e outras exclamações de um Octavio Paz ou de Breton. Ou de Artaud. Ou quem não gostaria de ter escrito, como esse homem de existência quase contestada, alguma coisa assim:

"Que o vento, cujos lamentos sibilantes que entristecem a humanidade, desde que existem vento e humanidade"...

Isso é Shakespeare. Puro Shakespeare. Nada menos do que um Shakespeare. Ou seja, um irmão de destino de Isidore Ducasse. Ou seja, outro homem quase sem história. E sem túmulo.

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