sábado, 27 de novembro de 2010

A Lingüística Atual e o Ensino de Línguas

Jorge Campos / PUCRS

A Lingüística de hoje é uma área marcada por pesquisas intensas
em cada subteoria e em suas relações interdisciplinares. Após o advento de duas grandes
revoluções no século XX, o Estruturalismo de Saussure e Bloomfield e o Gerativismo de
Chomsky, as áreas da Fonologia/Morfologia/Lexicologia/Sintaxe/Semântica/Pragmática
foram sendo, gradativamente, constituídas como ramos especializados da Teoria
Lingüística, até atingirem o sofisticado status técnico que apresentam atualmente. Da
mesma forma, na relação com outras disciplinas científicas, vê-se um enorme crescimento
da Psicolingüística, Sociolingüística, Lingüística Computacional, etc. Em que sentido, isso
produz impactos sobre a metodologia do ensino de línguas?
Inicialmente, há que se considerar que a tradição de ensino de
línguas, desde o período clássico, com o Grego e o Latim, representa uma tendência de
valorizar formas lingüísticas entendidas como padrão em relação a outras, consideradas
populares em sentido amplo. Isso implica que há um conjunto de normas a serem seguidas,
de modo a propiciar o domínio, por parte de todas as classes sociais, do idioma materno
num certo nível de organização. A conseqüência histórica disso é o que chamamos de
Gramática Tradicional. Este instrumento de ensino de línguas atravessa os séculos e, ainda
hoje, possui um sólido enraizamento nas escolas com grande repercussão sobre a escrita em
todos os contextos em que ela é exigida, como vestibulares e concursos em geral. Em que
sentido, tal Gramática é desejável e eficiente?
Primeiramente, trata-se de não confundir a ciência da linguagem
com a normatização de um padrão lingüístico. A primeira tem sua preocupação voltada
para a descrição e explicação do fenômeno da linguagem em sua natureza humana. Trata-se
de investigar o que é a capacidade da linguagem, como se a adquire e como se a põe em
uso; a segunda caracteriza-se por uma atividade de regulamentação social do uso da
linguagem, visando a uma padronização de formas, especialmente para a dimensão escrita.
As duas atividades, em suas funções e objetivos, podem conviver sem nenhum conflito
desde que sejam coisas distintas, uma em sua natureza científica, outra em sua natureza
social. Por que, então, o desenvolvimento da teoria lingüística parece coincidir com uma
certa crise no ensino de línguas?
Os gramáticos, desde o período clássico, foram, na verdade os
primeiros sistematizadores do fenômeno lingüístico e, nesse sentido, precursores da ciência
lingüística. Quando a disciplina atingiu o status de ciência, sustentada por evidências
empíricas e por leis formais, a velha gramática deveria ser ajustada ao novo quadro. Ou
seus fundamentos eram consistentes com o que se sabia cientificamente, ou ela corria o
risco de se tornar vácua. Os professores tradicionais, nesse contexto, ficaram um tanto
confusos, misturando os aspectos descritivos da velha gramática com suas formulações
normativas. A descrição tem uma natureza diversa das prescrições. A primeira constitui-se
numa abordagem do fenômeno lingüístico como ele é; as segundas, da língua como ela
deveria ser em seu uso social. Dado um certo caráter de valorização da ciência, rapidamente
muitos professores partiram para uma crítica à Gramática Tradicional, denunciando-a em
suas fragilidades e inconsistências à luz da Lingüística. Aparentemente, o ensino de línguas
deveria ser baseado nas investigações rigorosas de hoje, descartando-se a descrição
tradicional. Seria isso possível?
Na verdade, trata-se de colocar o problema de forma mais
adequada. A ciência lingüística não pode ter preocupações com o tipo de expressão escrita
que deve ser assumida na documentação de qualquer espécie, porque isso é uma decisão da
ordem da política educacional e cultural de um país. Cabe aos legisladores e homens de
cultura examinarem as exigências de padrão lingüístico nos textos, como o nível de
aceitação de neologismos ou estrangeirismos, por exemplo. Ao cientista, cabe manter a
consistência e o rigor da investigação em que a linguagem, não cada língua, é o objeto de
conhecimento. Obviamente, não deveria haver incompatibilidade entre os fundamentos
descritivos da Gramática e os resultados científicos conquistados. Aceita-se, hoje, por
exemplo, que a linguagem tem uma base inata. Nasce-se com a competência para adquirir
uma língua e esse aprendizado tem suas regras de evolução, especialmente até a maturação
do processo no cérebro/mente. Tal conhecimento, diríamos neurolingüístico, não pode ser
desconhecido pelos educadores. Há um certo consenso de que as formas da sintaxe das
diversas línguas são fundamentadas em princípios universais e parametrizadas de maneira
particular em cada língua. Se isso é verdade, então os professores de língua não deveriam
ignorar tais resultados científicos em seu trabalho na área social da linguagem. Que
conseqüências se seguem disso?
É mais simples do que parece, na teoria, e mais complexo do
que se pensa, na prática. Basta que as Gramáticas tradicionais sejam fundamentadas
cientificamente em suas bases descritivas e que haja um planejamento mais racional sobre a
normatização da escrita. Não se poderia, no primeiro caso, ignorar o que a Lingüística
desenvolveu ao longo dos últimos cem anos e não se pode desconsiderar a evolução da
escrita nas mídias mais complexas, eletrônicas ou de massa, no segundo. Qual a implicação
de tal contexto tecnológico para o ensino de línguas?
O livro clássico era a base para a padronização do uso de uma
língua. Os literatos desde a tradição clássica eram as fontes do bem escrever, conforme toda
a gama de citações das velhas gramáticas. Ocorre que, hoje, o livro de ficção literária não é
mais o centro de toda a formação cultural do indivíduo. Os desenvolvimentos científicos e
tecnológicos nos oferecem um complexo contexto de linguagens altamente sofisticadas,
desde a televisão, o rádio, os jornais e as revistas, na cultura dita de massa, bem como os
chats e os e-mails da cultura eletrônica. Hoje precisamos ser orientados para ler na era
digital, ou o que se poderia chamar de navegar pela linguagem. Não é possível ignorar-se
essa fantástica variedade lingüística no ensino de línguas. Nesse contexto, o novo
instrumento, que viesse a substituir a velha gramática, no nobre trabalho de favorecer a
competência e o desempenho no uso da linguagem, deveria incorporar os resultados da
ciência lingüística em seus fundamentos e reformatar os padrões de normatização na era da
escrita digital.
E o que dizer sobre a fala e sobre a globalização da linguagem
nesse cyberspace ? well, isso já é um outro domínio, na proposital ambigüidade do termo.
Referências informais para as considerações acima:
Cours de Linguistique Générale de Ferdinand de Saussure
Knowledge of Language de Noam Chomsky
Philosophy of Linguistics de Jerrold Katz
Língua e Liberdade de Celso Luft
Gramática do Português Contemporâneo de Celso Cunha

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