terça-feira, 23 de novembro de 2010

A PALAVRA DE DORIAN

Jaime Hipólito Dantas, promotor público em Mossoró, ex-bolsista no País de Gales, professor, técnico em contabilidade, antigo dirigente do Centro Estudantal Mossoroense, antigo diretor do Departamento de Cultura de Mossoró, autor do livro de contos "O Aprendiz de Camelô", de uma dezena de ensaios de crítica literária, de contos premiados pela revista A Cigarra e de poemas não premiados, orador mais para conferencista do que para tribuno, nasceu em Samos, mas escolheu Atenas para construir seu jardim. Sobre o seu pensamento, Tito Lucrécio Caro escreveu um poema chamado "Do Rerum Natura".
Malgrado nascido num lar cristão, no qual o cristianismo é cumprido nos seus ritos e também na sua essência sobrenatural, Jaime, a pouco e pouco, como gostava de escrever, foi se distanciando da fé dos seus ancestrais e das lições diárias de sua mãe Eufrásia. O cristianismo passou a ser para ele um pensamento respeitável. A fé, um costume. Tanto que em depoimento recente prestado ao Museu da Imagem e do Som, informou ser um católico consuetudinário. Capaz de não perder as missas aos domingos, não comer carne em dias de preceito, comungar uma vez por ano e, se insistirem, fazer as nove primeiras sextas-feiras. Mas, intelectualmente, distante daquilo que nos seus começos possuía um valor absoluto ou quase: a filosofia integral de Maritain, a pregação lúcida de Alceu Amoroso Lima, certas páginas de Gustavo Corção, a obra de Bernanos.
O afastamento progressivo da fé (a qual voltará muito cedo) não foi resultado de uma atitude. Que entre as suas qualidades está a coragem de ser ele. E que, no fundo, gostaria de ser, ainda hoje, sempre, aquele tímido crente das novenas e procissões, temente a Deus, cumprindo devotamente o seu dever de louvar o Bendito.
Deu-se que houve tais confusões no mundo, que Jaime, com talento, mas sem tempo nem vocação para examiná-las, não encontrou alento para alimentar a plantinha débil, nascida por obra e graça de uma catequese maniqueísta, causadora de tantos males.
Foi sendo levado por observações menos profundas, terminando por erigir a sua própria filosofia, de fato não distante do pensamento cirenaico, renovando, no essencial, a filosofia de Demócrito.
Para ele, o universo é mecanismo, não havendo razão para intervenção de deuses, mesmo porque não há finalismo.
Jaime tem explicações para cada coisa, "não lhe importa qual das explicações é a verdadeira; o que lhe importa é saber que há explicações, fazer compreender que o raio é um fato natural, não uma prova de cólera divina, e conseguir que o homem viva com calma, sem temer os deuses".
A sua filosofia é moralista. Para Jaime, o bem é o prazer e ele é o único que deve indicar o que convém e o que desconvém ao homem. Mas que o prazer seja puro, sem dor, estável, deixe o homem livre. Nada de paixões violentas. O ideal é o homem sereno, filho da temperança, equilibrado. Homem que a tudo suporta com bom humor.
A esse pensamento, Jaime alia muitas idéias de Pirro, Timão, Arcesilau e Carnéades.
Fechado o seu jardim ateniense, empreendeu duas mudanças. Melhor dizendo, três. A primeira, se não me engano, para as terras do Maranhã. A segunda, algodoais de Caicó. Finalmente, Mossoró.
Quando chegou ao Alto de São Manuel, para além do Alto, terras conhecidas como Hipólito, não consta tenha dito vim, vi e venci. Mas, sem empurrões, fez as três coisas. Com talento quanto graça.
Foi menino pobre, filho de viúva. Menino de inteligência privilegiada, viúva de coragem admirável. Havia que estudar, mas dinheiro não havia. Toca a bater a porta do hoje cônego Jorge Paiva O´Grady e pedir bolsa de estudo no colégio da diocese. O santo padre, que viria a ser depois especialista em discos voadores e literatura mais ou menos aérea, tinha ar puro de asceta. "Um santo", diziam. Quase transparente. Diáfano. Com momentos de levitação. Ouviu a mãe viúva e disse não. O colégio da Igreja não era lugar indicado para pessoas de pouca ou nenhuma posse. Quem não pode estudar, não estuda. A viúva não disse palavra. Foi bater noutra porta, a mesma simplicidade, a mesma dignidade na extrema pobreza. Esta, de um padre não diáfano, longo de transparência, não aéreo, olhar duro, terra-a-terra, cara de macho, charuto na boca, mão pequena alisando a barriga enorme. Padre Mota. E a bolsa saiu. E o menino foi estudar na Escola do Comércio de Alcides Fernandes. À noite, que o dia era para trabalhar todinho.
Empregado de Manuel Herculano e depois de Enéas Negreiros, fábricas de rede. Já mais tarde, correspondente comercial de Raimundo Jovino. Depois, Prefeitura Municipal, jornal O Mossoroense, rádio.
Conheci-o em Enéas Negreiros. Quem diria que aquele empregado de fábrica de redes era filho de Samos, criador de jardim em Atenas, autor de um pensamento exposto, nos anos 90, em poema em latim de Lucrécio Caro? Enéas, diga-se em seu favor, ignorava. Themi também não sabia. Sabiam alguns meninos, que o que Deus esconde aos sábios revela aos pobrezinhos. Sabíamos eu, Wilson Lemos, Pedro Batista de Melo, Máximo de Medeiros Filho. Mais um, mais dois, no máximo três privilegiados outros.
E eu, mais do que os outros, carecia de sua ciência. Enquanto os demais se bastavam com os contatos domingueiros, esporádicos, ligeiros, na Praça da Redenção que substituiu o jardim de Atenas, eu carecia ouvi-lo no cotidiano. E passei a ser o maior ladrão de Enéas Negreiros. Todas as tardes interrompia os afazeres de seu empregado. O que ouvi dele, então, daria para encher uma biblioteca. Hoje, a revelação de Carpeaux e de seus ensaios do purgatório. Amanhã, Álvaro Lins e Alceu Amoroso Lima. Depois, a poesia de Bandeira, Drummond, Schmidt, Murilo. Pedaços desvairados de Mário de Andrade. As coisas que lhe contara, também, Belzarte.
Quando menos se esperava, Jaime apareceu doutor de canudo e de anel de rubi. E de ciência. Provado em terras de Albion. Escrevendo como um mestre, falando que é uma beleza, sabendo tudo de literatura e arte, múltiplo nos campos da inteligência.
Entre as coisas, fez política. Ajudando a engrandecer muita gente.
Antes, foi conduzido ao jornal por Lauro Velho, o gato russo.
Antes, fez rádio. E até radionovela.
Deu-se tempo ara correr o mundo e conhecer os homens. Foi visto numa praça de Londres, notado em avenida de Nova Iorque, percebido em bistrô de Paris. Riu e fez galhofas no Uruguai e faturou o Brasil montado num trem do povo. Reconheceu, ao fim e ao cabo, que tudo é meros e que há de viver, enquanto a morte não traz libertação. E vive. Numa disponibilidade que espanta e, às vezes, irrita a sensibilidade maviosa de Elder Heronildes da Silva. Mas que não é outra coisa senão coerência de vida e filosofia.
Para o meu gosto, ele é uma das cinco pessoas mais importantes da Província. A primeira de Mossoró. Ao contrário de Rafael, o espanhol, que escreve puto da vida, o filho de Samos escreve sorrindo. Mofa, pouco caso, sei não. E nunca a gente sabe o que quer dizer, que uma de suas artes mais finas é deixar o outro na escuridão, no limbo, incapaz de entendê-lo, de penetrá-lo, de descer ao abismo de sua sinceridade, descartando tudo que nele é ironia, é sarcasmo, é mot d´esprit. Não se compromete tolamente. Não por temer de. Por gastura. Não vale a pena. Para quê? Se isso não é assim, será de outra forma. As coisas continuarão iguais, o placar zero a zero, o jogo continuará. Daqui a 200 anos, quem discutirá a frivolidade de hoje?
Jaime Hipólito Dantas ri e vai pra a praia. Vaqueiro de uma Marília que ele cantou a vida inteira, numa premonição espantosa. Ri e vai pra a praia. Lá encontrará a gente de sempre, o mesmo uísque, a mesma conversa, as mesmas gargalhadas, os mesmos gestos. E continuará rindo. Lembrando os dias de Samos, as preleções em Atenas, a cara encerada de padre Jorge, as redes de Enéas, as viagens para Maceió e Natal. E ri, ri. E às vezes o riso franco cai, fulminante, sobre o cocuruto da gente. Infeliz de quem não sabe disso...

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