sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A Marvada Carne

Dossiê André Klotzel


Direção: André Klotzel
Brasil, 1985.

Por Vladmir Lazo Correa

Foram poucas as vezes em que o cinema (ou mesmo a literatura) explorou a fundo o universo dos caipiras no interior de São Paulo. Durante algum tempo, apenas as comédias de Amácio Mazzaropi se detiveram nesse nicho, sempre obedecendo ao estilo consagrado do falecido humorista. Mas trata-se de um mundo todo particular e rico que poderia render quase tantas obras quanto o universo sertanejo, por exemplo, ainda que desprovido do repertório de tragédias e lutas pessoais que permeiam a vida dos habitantes do sertão. No cinema brasileiro, além da filmografia de Mazzaropi, é possível citar alguns exemplos do começo da década de cinqüenta (O Comprador de Fazendas, O Saci), ou da carreira do genial Ozualdo Candeias, além de um interesse de produções recentes (Cafundó, Tapete Vermelho) como alguns dos representantes que ilustraram o filão do universo caipira.

Um dos quadros mais fidedignos e carinhosos com esse meio é o longa de estréia do diretor André Klotzel. A Marvada Carne é um trabalho que escapa da caricatura e dos excessos que acompanham muitos dos demais objetos audiovisuais que apostam na sublimação de um exotismo como um caminho mais fácil para conquistar o interesse do espectador (algo bastante recorrente em novelas de televisão). Porém, como distinguir o que é autêntico e o que é fetiche nessa relação do real com a encenação em um filme que reproduz um universo tão peculiar como o do caipira? Um olhar mais atento pode aferir que A Marvada Carne não se deixe cair e prender na armadilha, e o que vislumbramos na tela é uma autenticidade que transparece em cada fotograma. Entretanto, por mais importantes que sejam essas considerações, A Marvada Carne vai muito além delas, não podendo se restringir a análise do filme de André Klotzel a um contexto sociológico, aprisionando-o em sua relevância cultural, o que seria uma visão turva, já que assim se escaparia de encará-lo como um esforço estético legítimo, portanto, bem-sucedido.


Na trama, o caipira Nhô Quim (Adilson Barros) vive isolado e distante no meio do mato em companhia do cachorro e da cabra de estimação. O sujeito parece estar em casa, porém é acometido por dois desejos que o tiram o sono: casar com alguma boa moça e comer carne de boi. Entre fincar raízes ou botar o pé na estrada, Nhô Quim opta pela segunda alternativa para arranjar solução para o que tanto o aflige.

Ao mesmo tempo, a menina Carula (Fernanda Torres) está em conflito com Santo Antônio, que ainda não lhe enviou o noivo desejado. Por vias tortas e pelas mais variadas brechas, Nhô Quim cruza o seu caminho, tendo que superar a desconfiança do Nhô Totó (Dionísio Azevedo), pai de Carula. Há um bocado de graça na ingenuidade de Quim, que custa em reconhecer na jovem a um palmo do seu nariz a mulher que tanto procurava, como quando encerra a pescaria recém-iniciada porque a jovem se despe para nadar, se retirando dizendo que “rio em que moça donzela toma banho pelada nunca mais dá peixe” - para desespero da menina, que mais tarde faz chegar aos ouvidos dele que seu pai supostamente teria um boi reservado para quando ocorrer as bodas de sua filha, o que chama a atenção do humilde homem para a possibilidade de um casório.

Para que o casamento aconteça, Nhô Quim, que trabalha na roça, é desafiado a uma série de provas em que terá que demonstrar toda a sua argúcia e esperteza, numa sucessão de desafios que não terminam nunca, optando então por fugir, primeiro para se casar, depois em direção à cidade grande (o que inclui no meio do caminho um encontro com o diabo em pessoa), querendo finalmente realizar a sua vontade de comer carne de boi. Ao final, a interação do personagem com os transeuntes e os espaços da cidade é uma performance que transparece mais a verdade particular de sua proposta de encenação de uma fábula, do que a busca por um ideal de veracidade.

Uma das comédias mais deliciosas do cinema brasileiro, A Marvada Carne pode ser considerado um clássico da cinematografia nacional dos anos oitenta.

Direção: André Klotzel
Brasil, 1985.

Por Vladmir Lazo Correa

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